“Todos pertencem a todos”
Quando li o Admirável Mundo Novo, um livro antigo de ficção científica baseado na terrível teoria geneticista do início do séc. XX, escrito pelo brilhante Aldous Huxley, o lema da sociedade do futuro descrita na obra era: “everyone belongs to everyone”, ou numa tradução literal: “todos pertencem a todos”.
Na obra a sociedade era planejada de forma que seus membros existiam para realizar tarefas determinadas. Os nascimentos humanos eram programados e gestados “in vitro”. Naquela sociedade não havia família, amizade ou qualquer tipo de relação que envolvesse afetividade.
Estive por onze dias do mês que passou no Japão e concluí que a prática cotidiana deste lema é possível, não da forma apresentada no livro de Huxley, mas sim da forma mais positiva possível, envolvendo cidadania, carinho e atenção. Mesmo nas grandes cidades é visível o cuidado que todos tem com todos, ou com cada um.
Só esse tipo de atitude permite que os quase 25 milhões de pessoas consigam conviver numa área metropolitana muito menor do que a da Grande São Paulo. Lá, pedestres e ciclistas dividem as mesmas e exíguas calçadas sem qualquer tipo de conflito: nenhum ciclista pressiona qualquer pedestre, mas pelo contrário, chega muitas vezes a desmontar da bicicleta quando encontra pela frente indivíduos mais lentos, até que surja a oportunidade de ultrapassá-los, sempre com calma e harmonia. Ciclista que quer pedalar rápido vai para a rua, onde é respeitado pelos demais veículos.
Trata-se de um ambiente urbano tão seguro que crianças vão sozinhas à escola, utilizando os complexos e extensos sistemas de transporte japoneses, sobre trilhos ou pneus. Só mesmo as crianças muito pequenas é que são levadas à escola pelos pais, frequentemente em cadeirinhas apropriadas acopladas às bicicletas.
Já os indivíduos com deficiência tem toda a infraestrutura que lhes permite o deslocamento autônomo e seguro, com rampas perfeitas, trilhas direcionais em todas as calçadas e um simpático semáforo sonoro com som de passarinhos, que indica ao deficiente visual o momento de atravessar. Mas nada disso funcionaria se os condutores de veículos motorizados não tivessem a exata noção de quem é vulnerável e respeitassem essa vulnerabilidade.
E por falar na relação entre o transporte ativo e o motorizado, as travessias de pedestres funcionam como continuidade das calçadas – para realizar a travessia basta se posicionar junto a uma faixa de pedestres que os veículos param imediatamente. E o melhor de tudo: o tempo das travessias semaforizadas é mais do que suficiente para que qualquer pessoa possa completá-la, seja um atlético puxador de riquixás até aquela senhorinha que caminha lentamente com seu andador. Todos os focos de pedestres contam com temporizadores que informam não só o tempo total da travessia, como também quanto tempo falta para se poder atravessar. É uma maravilha ou não é?
E os motorizados?
Mesmo tendo utilizado muito pouco o serviço de táxis e ônibus, percebi que o trânsito é realmente ruim porque não há nenhum tipo de prioridade ao transporte público de média capacidade – há pouquíssimas faixas exclusivas para ônibus, por exemplo. Também quem precisa delas numa rede de transporte de alta capacidade que extrapola os 500 km? Não observei muita restrição a caminhões, pois vi vários deles circulando e fazendo carga/descarga durante o dia nas áreas comerciais.
Em meio a tudo isso o mais incrível é a percepção clara de que as pessoas não priorizam seus próprios umbigos mas praticam sistematicamente a noção do coletivo. Do contrário, a convivência harmoniosa que notamos nas populosas cidades japonesas jamais seria possível.
Quem sabe um dia a gente chega lá!?