A primeira coisa que deve ficar clara para o futuro prefeito de São Paulo é que ele deve governar para a cidade, para os cidadãos paulistanos, até 2016, e não para turistas e fãs que assistirão aos jogos de futebol na Copa de 2014.
Projetos de transporte são duradouros e devem ser levados com muito mais seriedade do que a exposição internacional da cidade em algumas semanas de 2014. Estamos falando aqui do impacto sobre milhões de deslocamentos diários de pessoas entre suas residências, empregos, escolas, universidades, serviços públicos, comércio e opções de lazer. Deslocamentos esses que se dão em redes cada vez mais sufocadas e em condições cada vez mais precárias.
As políticas de mobilidade em uma cidade como São Paulo têm uma importância que ultrapassa as fronteiras do município. Pelo peso demográfico e econômico da cidade, políticas públicas na área da mobilidade podem impactar em toda a região metropolitana. Portanto, o primeiro compromisso sereno e responsável, digno de um estadista que deseje liderar um processo de transformação estrutural das condições de mobilidade, seria buscar alianças e sinergias com os prefeitos de outras cidades do espaço metropolitano, principalmente para propulsionar a integração tarifária (rumo ao bilhete único metropolitano) e amarrar o planejamento no plano regional.
Como esse é um tema espinhoso, os primeiros esforços neste sentido devem ser feitos já em janeiro do ano que vem. Se bem arquitetada, a integração tarifária melhoraria muito a vida da massa de trabalhadores que já está no trem ou no ônibus no escuro da madrugada, rumo seu trabalho na capital. A capacidade de visão e liderança e a vontade de transformar pode ser avaliada já nos primeiros meses de mandato.
O paulistano também já não aguenta mais ouvir o velho chavão “priorizar o transporte coletivo”. Se bem que, nesse ponto, houve uma sensível mudança no discurso, ao longo da última década. Antes, priorizar o transporte coletivo era sinônimo de melhorar o transporte por ônibus urbanos, sistema da alçada da prefeitura. Atualmente, a prefeitura afirma que os ônibus não são a solução e, com orgulho, promete investimentos no metrô. Os ônibus, pelo menos na atual gestão, são deliberadamente deixados de escanteio.
Mas quem quiser fazer bonito nesta área terá de atualizar e executar o plano para o transporte coletivo publicado há oito anos. Este plano, que concebia o desenvolvimento de uma malha de corredores de ônibus, ficou à sombra da inauguração de pontes estaiadas e do alargamento de vias expressas ocorridos nos últimos anos. Neste sentido, é preciso chacoalhar a SPTrans, que deve atentar melhor à qualidade e fiscalizar com mais rigor os serviços prestados por aqueles que receberam a concessão de um serviço de interesse público.
Além disso, as prioridades da companhia devem ser revistas. Antes de oferecer acesso sem fio à internet em algumas paradas de ônibus, seria mais adequado definir um nível de qualidade de estadia nas paradas de bairros mais distantes do centro e definir um plano para que todas tenham abrigos e informações sobre linhas e itinerários. Antes de equipar os ônibus com monitores de televisão, dever-se-ia estipular metas de qualidade para os veículos (piso rebaixado, acessibilidade universal, sistemas de informação a bordo). E melhorar a qualidade dos postos de atendimento. Hoje quem vai a um deles pedir informação, por exemplo, sobre o funcionamento do bilhete único, não recebe nenhum material sobre ele e é aconselhado a obter as informações pela internet.
Também é importante que a equipe de governo esteja consciente de que mobilidade urbana não é futebol. Não se trata de deixar cada modo de transporte brigar entre si em busca da primeira colocação em termos de número de viagens. Não deve se deixar levar pelas pressões das torcidas organizadas a favor de um ou de outro meio de transporte, em detrimento dos demais. Mesmo assim, no caso de São Paulo, os investimentos em infraestruturas que beneficiam o trânsito de automóveis particulares são tão desproporcionalmente gritantes, que é indefensável dar continuidade à política de transportes atualmente desenvolvida.
As trágicas consequências da cidade refém do automóvel nunca estiveram tão à vista: tempo perdido e desperdício de combustível em congestionamentos que já beiram os 300 quilômetros na incompleta medição realizada dia a dia pela CET; estresse relacionado com o barulho intermitente emitido pelos motores; e principalmente a redução da expectativa de vida da população que respira um ar carregado de elementos insalubres.
Já passou da hora de romper com esse paradigma de mobilidade e de política, sistematicamente estimulado pelo governo federal, que concede subsídios à indústria automobilística e mantém artificialmente a nível baixo os preços dos combustíveis fósseis e não renováveis.
Em função deste contexto, o papel da Companhia de Engenharia de Tráfego também não pode ser mais o mesmo de quando a cidade era produzida para a massiva absorção de mais e mais automóveis. É necessário reorientar a companhia e dotá-la de meios para priorizar o trânsito seguro de pessoas pela cidade. O que significa, por exemplo, dar mais atenção aos pedestres e às calçadas – esses locais onde regularmente se flagra veículos da própria companhia estacionados irregularmente.
Associações de ciclistas pedem que os candidatos a prefeito assinem um documento em que se comprometem a aumentar progressivamente a parcela do orçamento destinado à mobilidade por bicicleta e a elaborar um plano cicloviário para a cidade. Ainda que esses documentos, mesmo quando assinados, sejam vez ou outra considerados meros papeizinhos, sem valor algum, creio que o foco de tais compromissos deveria ser outro, com metas mais palpáveis e que façam sentido. Sentido não para o governante ou para os especialistas em transporte. Mas para os cidadãos.
Por exemplo: assegurar que toda criança tenha acesso seguro a pé ou por bicicleta a estabelecimentos de ensino público em um intervalo de 20 minutos. O prefeito pode, para isso, construir mais escolas, instalar ciclofaixas e ciclovias, remodelar drasticamente o desenho das vias públicas ou repensar a localização de locais de moradia. Pode investir recursos de diversas origens e com diversas finalidades. Embora nem todas elas se encaixarem necessariamente no rótulo “bicicleta”, essas ações podem definitivamente favorecer a mobilidade por meios de transporte não motorizados.
No entanto, as mais profundas mudanças nos padrões de mobilidade devem surgir de intervenções que não competem diretamente a uma secretaria de transportes. Como pode as decisões de aprovação ou reprovação de empreendimentos imobiliários em uma cidade como São Paulo, praticamente, dependerem apenas da assinatura de uma pessoa? Como pode haver shopping centers que funcionam há décadas sem oferecer o número mínimo de vagas de garagem estipulados pelas autoridades? Como pode a cidade ser tão refém do setor imobiliário e da construção civil e quase nada fazer em defesa da qualidade de vida de seus cidadãos? Como impedir que o próprio município desrespeite as leis urbanísticas que torna públicas, a começar pelo próprio Plano Diretor, que foi alvo de uma mal esclarecida tentativa de reforma?
O candidato que quiser tratar seriamente a questão da (i)mobilidade urbana deve depositar sua atenção a essas perguntas que ficarão de fora dos debates televisionados e do horário eleitoral gratuito.