Luiz Carlos Mantovani Néspoli é Superintendente da ANTP
A Lei de Mobilidade Urbana, publicada em 2012, estabelece princípios, dentre os quais aqueles sobre o uso da via pública. É muito fácil perceber que seu objetivo é tornar melhor a vida das pessoas nas cidades, o que todos desejam. Reduzir o congestionamento, a péssima qualidade do transporte público, o enorme tempo de deslocamento, a poluição ambiental e suas doenças decorrentes, os acidentes e mortes no trânsito e o custo do transporte coletivo são alguns exemplos dos desafios para sua implantação.
Princípios como equidade no uso do espaço público de circulação, eficiência, eficácia e efetividade na circulação urbana e segurança nos deslocamentos das pessoas estão expressos na lei, e não por acaso. Alguns números são indicativos do desafio que temos pela frente: 78,5% da via pública no horário de pico são ocupados por automóveis (CET/SP), enquanto este modo só transporta 30% das viagens (ANTP); 80% do investimento público em infraestrutura foram dedicados ao transporte por automóvel (ANTP); morrem 46 mil pessoas por ano em acidentes de trânsito (DATASUS); 4 mil pessoas morrem por ano na cidade de São Paulo por doenças decorrentes da poluição do ar (FMUSP). São dados mais do que suficientes para esclarecer o atual desequilíbrio derivado da política que privilegiou e que ainda privilegia o automóvel.
É importante ter em mente que as diretrizes da lei não serão implantadas por obra do Espírito Santo, tampouco por gravidade. Passar da intenção para a ação, tirando do papel e colocando as diretrizes na prática, é que são elas. Eis aí o papel do administrador público e da sociedade.
A cidade assiste, dia a dia, o nascimento de novas faixas para circulação de bicicletas. Já são muitos quilômetros construídos. Assim como quando foram implantadas as faixas de ônibus, que segundo dados recentes da CET/SP aumentaram em 68% a velocidade dos coletivos, também as ciclofaixas vêm recebendo críticas, e o que é interessante e facilmente explicável, dos mesmos setores da população. Agora, por exemplo, elas estão representadas por poucas manifestações vindas do bairro de Higienópolis, e não é a primeira vez. É só lembrar do bafafá para impedir a construção da estação de metrô no bairro. Como nas faixas para os ônibus, as mesmas críticas se repetem. Começam sem muito argumento, apenas defendendo um pretenso direito, segundo o qual a compra do automóvel já vem acompanhada de um certificado de uso preferencial e, ainda, de um espaço gratuito de garagem na rua. Não só no bairro citado, mas em qualquer cidade brasileira, a via está repleta de veículos estacionados, muitas vezes dos dois lados da rua.
Multiplique-se dois metros de largura por quilômetros de extensão de asfalto e veja-se a área construída com dinheiro público e disponibilizada como garagem de automóveis. São Paulo tem 17.000 km de vias, dos quais 4.000 servem aos ônibus e apenas 400 km deles com faixa exclusiva. Essas proporções não devem ser diferentes nas cidades brasileiras. Com as medidas em curso e anunciadas pela Prefeitura, até o final do ano serão 100 km de ciclofaixas na cidade. São espaços prioritários ínfimos quando comparados com aqueles destinados ao automóvel.
Ao contrário do que muitos pensam, anda-se muito de bicicleta nas cidades brasileiras. São 2,2 milhões de viagens anuais (ANTP) e 214 mil viagens por dia (Pesquisa OD RMSP). Esses números são mais visíveis quando se observa que para suprir estas viagens seriam necessários cerca de 400 ônibus ou 150 mil automóveis.
É importante compreender a bicicleta como modo de transporte e não apenas como modo de lazer, razão pela qual os espaços a ela destinados têm que estar harmonizados com a cidade. A ciclofaixa junto ao meio-fio é um bom exemplo disso, permitindo aos ciclistas acessarem a cidade de maneira mais fácil e natural. Uma faixa totalmente confinada em um canteiro central (ciclovia) pode ser até mais segura, mas, por outro lado, não se articula inteiramente com a cidade e mais parece corredor de passagem ou espaço de lazer.
As novas ciclofaixas, assim como já aconteceu com as de ônibus, tiram as diretrizes da lei de mobilidade do papel e as colocam na rua. Possuem, ademais, um caráter simbólico importante: a iniciativa do Poder Público de retomar do automóvel o espaço que ele ocupa de forma exagerada, destinando-o para outros fins mais saudáveis para a cidade. Este gesto supera eventuais ajustes que devam ser feitos nos programas em curso.
Vale ressaltar também o efeito pedagógico da medida. A sinalização que segrega fluxos e estabelece limites físicos contribui para condicionar novos comportamentos e podem atrair novos usuários ao se sentirem mais seguros. A histórica falta de disciplina e de respeito às mínimas leis de trânsito pelos usuários da bicicleta é um traço cultural oriundo do processo de aprendizagem desde a infância. A existência de espaço definido e sinalizado é um bom começo para dar mais efetividade a programas de reeducação, que se espera que estejam previstos.
Ajustes e correções devem ser feitos a partir do seu uso e, para conhecer melhor onde são necessários, bastará uma pequena pesquisa com os ciclistas. De imediato, é necessário que existam focos de semáforos nos cruzamentos, já que há faixas com dupla mão de direção que foram construídas em vias de mão única. Com o tempo, é fundamental criar bicicletários, instalar paraciclos ou outros meios de estacionamento, para maior segurança do ciclista. E, claro, reduzir a velocidade permitida nessas ruas para 30 km/h para os veículos automotores, valor ideal para este tipo de convivência.
De resto, não é novidade que alterações são difíceis, em especial quando a cultura já estabeleceu pretensos direitos. Mas seguir em frente é necessário, por se tratarem de ações alinhadas com a política de mobilidade, e que, por isso, ao darem vida às ideias e conceitos estabelecidos na lei, devem ser aplaudidas. Que prossigam e sejam aprimoradas.