Thatiana Murillo
Professora e Cofundadora da organização Caminha Rio
“Você dirige o automóvel/Eu lhe dirijo argumentos/Você digere alguns momentos/Mas cola seus olhos ao ponteiro/E cola o ponteiro ao vermelho/E cola o seu carro ao da frente/Você diz a verdade quando mente/Porque amplifica sua voz quando fala/Seu carro vai rápido como uma bala/Seu carro é irrefutável/Mas as vielas são inviáveis (…)
Você dirige o automóvel/Mas eu dirijo seus tormentos/A minha lógica pedestre/Vai ser seu atropelamento/Eu serei o responsável/Irresponsábilizável (…)”
Foi no fim da década de 1980 que a banda Skowa e a Máfia ficou conhecida com o hit Atropelamento e Fuga. Reproduzo os versos que me parecem mais impactantes e que não saem da minha cabeça nestes últimos dias em razão dos vários “acidentes” que mataram ciclistas e pedestres em várias cidades do Brasil. Um dos últimos – infelizmente não o último – aconteceu no Rio de Janeiro, causado por um capitão do Corpo de Bombeiros supostamente embriagado.
Não sei se o músico Skowa sonhava com um trânsito mais seguro naquela época, mas o fato é que trinta anos depois, a crítica continua certeira para o grau da violência do trânsito nas ruas brasileiras. Estatísticas apontam cinco mortes por hora, a um custo de R$ 3 bilhões ao nosso Sistema Único de Saúde (SUS) nos últimos anos.
Apesar dos radares, da Operação Lei Seca e das campanhas educativas, é duro constatar que o trânsito ainda mata mais do que a violência urbana ou doenças cardíacas. Para sairmos desse ranking macabro, organizações da sociedade civil, departamentos de trânsito e parlamentares ligados ao assunto se movimentam para incluir a educação de trânsito nas escolas como conteúdo obrigatório no ensino fundamental.
Concordo com a iniciativa, mas não com sua obrigatoriedade. É jogar muita expectativa nos bancos escolares sem endurecer as penalidades que hoje são aplicadas para os infratores.
Acredito que as escolas deveriam ficar com outra função: ensinar o aluno a pensar a cidade na sua totalidade. Talvez, nesse processo de entender o porquê do desenho das nossas ruas, a mobilidade faça mais sentido de acordo com a realidade que cada um vive no seu território. É interessante que esse aprendizado seja prazeroso e oferecido através de projetos mais leves e mais descontraídos, sem o peso da avaliação ou da obrigação – que os alunos geralmente não suportam, sobretudo os adolescentes.
Uma formação de excelência para os condutores talvez fosse um investimento mais eficiente no sentido de deixar o trânsito civilizado. O motorista se faz no dia a dia dirigindo, o motociclista pilotando, o ciclista pedalando e o pedestre andando. É na prática diária, no ir e vir, no espaço que a cidade nos oferece que construímos os nossos deslocamentos familiares com todas as delícias e amarguras que encontramos pelo caminho.
Se as cidades continuarem com o mar de rotas que convidam motores a acelerar e ao mesmo tempo empurram pedestres e ciclistas para os pedacinhos que sobram nos cantos das ruas, sinto muito, mas estaremos estagnados.
Skowa sintetizou a questão nos versos…
“A minha lógica pedestre vai ser seu atropelamento, eu (pedestre) serei o responsável.”
Até quando?
Nota da edição: Atropelamento e Fuga foi lançada originalmente em 1987 pela banda Akira S & as Garotas Que Erraram. A música é assinada por Alex Antunes e Akira S. Com a regravação de Scowa e a Máfia, a canção ganhou uma versão funkeada, que fez sucesso em todo o país. Foi levada até a programas bem populares, como mostra este vídeo no “Xou da Xuxa”.