Peço licença ao Du Dias, para, colaborativamente, utilizar esse espaço do Mobilize Europa para contar um pouco das minhas experiências pelo velho continente.
Cheguei na Europa, especificamente em Paris, para passar uma temporada de um ano, entre outras coisas, estudando as políticas e a gestão da mobilidade urbana tanto na capital francesa quanto em outras cidades de meu interesse (Londres, Berlin, Lyon, Viena, Amsterdã, Copenhagen…). A escolha destas cidades não foi por acaso, todas elas têm algum destaque na promoção do uso da bicicleta enquanto meio de transporte, meu principal foco de pesquisa.
Depois dessa introdução, segue uma rápida apresentação: sou cidadão belo-horizontino e desde os meus 15 anos me locomovo majoritariamente de bicicleta. Quando digo majoritariamente, quero dizer algo próximo de 95% dos meus deslocamentos cotidianos. Não possuo carteira de habilitação e não tenho paciência para pegar os ônibus que ficam muito injustamente engarrafados junto com os 1.100.100 automóveis particulares pelas ruas da capital mineira. Cotidianamente, o metrô e o recém inaugurado BRT não me atendem geograficamente. Os outros 4,9999% eu divido entre andar a pé, pegar ônibus, metrô e taxi. Os 0,0001% são relativos a alguma carona.
Ao desembarcar em terras francesas, uma das minhas primeiras ações foi testar o sistema Velib’ (sistema de bicicletas compartilhadas – em breve falarei dele). Rodando pelas ruas de Paris, me deparei com uma realidade incrível, e não foram os surpreendentes 677kms de ciclovias ou ciclorrotas e nem os inacreditáveis 200 e tantos kms de linhas de metrô somados aos 115kms de RER (um sistema de trilhos que conecta a periferia de Paris com o metrô central, mas com menos paradas e maior velocidade). O que realmente me surpreendeu positivamente foi a quantidade de pessoas caminhando pelas ruas da cidade. Quando digo pessoas eu me refiro a todo tipo de indivíduos, desde criancinhas em seus primeiros passos até senhores e senhoras mais idosos.
Paris é a 10ª cidade europeia com maior percentual de deslocamentos feitos por pessoas a pé. Das capitais, é a que tem os índices mais altos deste tipo de deslocamento: 47%, aproximadamente. Em média, um parisiense efetua 2,17 viagens a pé por dia. As crianças de 5 a 15 anos e os idosos são os que mais caminham (respectivamente, 2,4 e 2,5 deslocamentos/pessoa/dia). Os jovens entre 15 e 24 anos são os que andam menos a pé (1,7 deslocamento/dia). Resumindo: as crianças e os idosos são os responsáveis por elevar o número de deslocamentos a pé em Paris.
Nas cidades motorizadas do século XX e XXI, as crianças perderam o direito à cidade. Obrigadas a se locomover da mesma forma que seus pais, de coletivo, moto ou carro, elas foram desacostumadas a andar e a viver as ruas (e nas ruas). Salvo algumas exceções, nestes centros urbanos as crianças não aproveitam mais as inúmeras delícias de uma cidade, mas apenas passam pelos seus espaços sem tempo de fazer parte dele e senti-lo.
Ainda que as cidades europeias tenham taxas de motorização superiores às brasileiras, é notável que existe respeito entre os diversos agentes do trânsito (pedestres, ciclistas, motoristas, motociclistas e outros – os taxistas também são mais educados que no Brasil, mas continuam sendo um problema para quem opta por andar a pé, de skate, patinete, patins ou bicicleta).
O respeito mútuo não é uma mera qualidade para que se coexista em segurança no trânsito, mas a condição fundamental. É Basilar. Sem ele, certamente, as ruas europeias seriam mais perigosas que as brasileiras, pelo número de automóveis. Na ausência desse fundamento, as crianças daqui não andariam tanto em seus lindos e pequeninos patinetes, bicicletinhas e acompanhando as mães, pais, tios, avós em bicicletas (e também em patinetes!).
Um exemplo notável: na porta de todas as escolas parisienses a velocidade máxima é 30km/h, quando não 20km/h. Elas estão dentro das Zones 30 (Zonas 30) ou Zones de Rencontre (sem tradução para o português, ainda).
Esse movimento poderoso de retomada pelo espaço público por parte das crianças foi iniciado na década de 60, pelas crianças do bairro holandês de Pijp, que começaram a questionar outras cidades possíveis dentro da desgastada e motorizada Amsterdã.
O resultado dessa ação infantil e outras tantas ligadas à contracultura resultaram na transformação do espaço urbano da capital holandesa para o que conhecemos hoje: índices altos de pessoas andando e, sobretudo, pedalando. Crianças, jovens, adultos e idosos vivendo e sendo a cidade.
Além disso, as relações sociais no velho continente no trânsito, espaço de conflitos recorrentes, também se alterou. À despeito de ainda haver tanta falta de educação e outras agressões ainda mais graves, os motoristas, motociclistas, ciclistas e outros indivíduos que transitam pela cidade têm compreendido que na ordem de preferências o primeiro lugar é das pessoas. É da vida.
PS: é incrível ver o orgulho que as crianças têm dos seus patinetes e bicicletas!
Guilherme Tampieri, Gui ou Tampieri é gestor ambiental, membro dos movimentos Nossa BH, Bike Anjo BH, BH em Ciclo e UCB – União de Ciclistas do Brasil. Partiu para a Europa para estudar o desenvolvimento das cidades e a mobilidade urbana, em especial por bicicletas. A partir de 2015 será colaborador do blog Mobilize Europa e convida o leitor do Mobilize a conhecer o velho continente a partir de fotos, vídeos, palavras e sentimentos.
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