Pois é, até o início deste ano, a China não fazia parte de meu short list de países desejados para conhecer. A não ser pela Muralha da China, uma das maravilhas do mundo, que desde menina tinha curiosidade de ver de perto. Os anos foram passando, a dificuldade em andar foi aumentando, e a vontade de conhecer a Muralha se afastando…
…De repente, a possibilidade de ir à China ganhou força com o convite da presidente do Rehabilitation International (RI), a chinesa Heidi Zhang, para participar da Reunião do Comitê Executivo desta organização mundial, da qual sou representante na América Latina. E também, para conhecer o trabalho da Federação das Pessoas com Deficiência com o apoio do governo chinês. A cidade era Hangzhou, não Pequim, e a Muralha fica longe, mas o convite recebido com esta “dobradinha” na pauta me encantou e lá fui eu pra China.
São muitas horas de voo. Saí de São Paulo e fui direto para Amsterdã, em onze horas e vinte minutos. Aguardei cinco horas no aeroporto Schiphol e segui para Hangzhou, com mais treze horas de voo. Depois de algum tempo, a vontade e de é falar: ‘pode parar o avião, que eu quero descer’! Cheguei em Hangzhou, fui trocar o dinheiro, e aí começaram as minhas muitas descobertas sobre a China: tive muita dificuldade para encontrar alguém dentro do aeroporto de Hangzhou que falasse inglês e, quando encontrei, a pessoa me informou que a casa de câmbio não estava aberta às 10h30 da manhã! Como havia pessoas esperando para me levar ao hotel, resolvi seguir.
Ufa! A garota que me acompanhou falava inglês. Eu realmente estava muito cansada, mas o caminho do aeroporto até o hotel – mais ou menos 40 minutos – me despertou. Esse primeiro contato com o solo chinês, foi marcado pelo cuidado da rodovia, onde se via um canteiro vivo ao longo de sua extensão. Era visível que se tratava de uma grande cidade, e em pleno desenvolvimento. O corpo estava bem cansado, mas os olhos estalados consumiam as primeiras informações visuais.
Chegamos ao hotel, onde fui recebida por vários voluntários que falavam inglês e, para a minha surpresa, fui apresentada à intérprete Yang, que me acompanharia durante os dias do evento. Então, quando achei que iria descansar um pouco, Yang me avisou que me acompanharia ao banco para a troca do dinheiro.
Problemas com a Julinha
Fomos de carro, e eu de olho na acessibilidade da cidade. Tudo ainda estava muito confuso, e não foi nada fácil ir do carro até a entrada do banco com a minha scooter, a Julinha. Quando cheguei e vi a rampa para entrar no prédio, me assustei…era muito íngreme. Deu tudo certo, mas a aventura de subir e descer não foi nada agradável. Voltamos ao hotel e quando tinha certeza de que finalmente iria descansar, não é que a roda traseira da Julinha soltou? Fiquei preocupada, não é como trocar um pneu…Trouxeram-me uma cadeira de rodas manual enquanto a Julinha seguiu sei lá para onde, mas a minha intérprete disse que iriam consertá-la. Sem muita opção, confiei.
A essa altura, já estava doida para ir para o meu quarto, mas antes teria que fazer o pagamento do hotel, que lá na China é feito já no check-in. Entendi que teria que ser assim e, assim o fiz. Acabei perdendo o horário do almoço e a minha intérprete se prontificou em me acompanhar. Eu mais que rapidamente aceitei. Somente pedi a ela uns minutinhos para subir e tomar um banho. Eu estava bem empoeirada, mas sabia que um banho me animaria. Logo que entrei no quarto, a Julinha chegou, linda e com suas rodas em perfeito funcionamento. Dito e feito.
Tomei banho e fui, feliz da vida, a um restaurante próximo ao hotel. Seguindo a recomendação da Yang, pedi um noodle maravilhoso. Não foi nada fácil comer o noodle com os “kuazi” chineses, mas a fome era grande e com a ajuda de Yang tive um final feliz. A surpresa veio na hora de pagar a conta, porque eles não aceitavam cartão de crédito internacional, apenas dinheiro vivo. Aliás, essa foi uma descoberta da China: restaurantes, lojas, farmácias e comércio em geral não aceitam cartão de crédito internacional, apenas dinheiro vivo. No hotel, aceitavam o cartão, mas dólares ou euros, nem em pensamento.
Ciclovias para pedestres, e cadeirantes
Aproveitei para checar a acessibilidade das ruas, dos espaços urbanos, para xeretar os edifícios e entender o transporte público. Tirando os canteiros vivos, não curti o que vi e descobri. As calçadas são planas, regulares e sem buracos, mas são estreitas e quase não têm rampas. O que acaba acontecendo, com o volume intenso de pessoas pra lá e pra cá, é a utilização das ciclovias chinesas.
Mila e Julinha na ciclovia: disputa com ciclistas, pedestres e “mototos”
Estas ciclovias cortam a cidade inteira e são separadas do viário, na maioria das vezes, por canteiros vivos. Nelas tem-se que compartilhar o espaço com muitas bicicletas e “mototos”, como são chamadas as muitas motinhos que invadem o trânsito o tempo inteiro. Rodei por vária ruas no bairro de Zhejiang e não vi um banco ou um local de convivência que me convidasse a descansar. Tive que andar o tempo todo atenta e apreensiva para não ser atropelada pelas muitas pessoas, bicicletas ou mototos. Vale observar que quase todos – pedestres, ciclistas motoristas e “mototistas” – não desgrudam os olhos do celular.
Os prédios comerciais quase nunca têm acesso para pessoas com deficiência. Quando tinham, eram com as tais rampas íngremes. Só com a ajuda de outras pessoas eu e Julinha conseguimos subir e descer.
Ônibus sem acessibilidade
Via muitos ônibus coloridos nas ruas, mas em nenhum vi o símbolo de acessibilidade. Já a estação de metrô próxima ao hotel tinha elevador e estava funcionando. Descobri que o sistema público de transporte sobre pneus atende a toda a cidade, mas a frota quase não é acessível. Disseram-me que apenas um ou outro carro têm acessibilidade.
O sistema de trilhos é recente e ainda não tem muitas linhas e estações, mas a maioria conta com elevador e é fácil acessar o trem. Infelizmente, não tive oportunidade de conferir. Quando questionei sobre como as pessoas com deficiência e com mobilidade reduzida se movimentam pela cidade, a resposta foi objetiva: eles usam carro. Pois é, outra história, outra economia, outra cultura, outro modo de vida.
Retornei ao hotel e, ainda agitada com o dia diferente, tentei muito acessar a internet com o sistema VPN que adquiri no Brasil, mas nada rolou. Pedi ajuda à minha intérprete e a funcionários do hotel, mas não tive sucesso. Estava completamente sem contato com o mundo e foi uma experiência, no início, bem estranha, mas depois, com as muitas atividades e com a certeza que seria por pouco tempo, se tornou uma experiência aceitável. Não eram 8 horas da noite e eu já dormia maravilhosamente.
Inclusão em empresas chinesas
Durante dois dias tivemos uma série de atividades de campo para conhecer o trabalho desenvolvido da Federação das Pessoas com Deficiência com o apoio do governo chinês, bem como o trabalho de grandes empresas chinesas. E também visitamos atrações turísticas da cidade de Hangzhou. Destacamos o Grupo Alibaba, um dos maiores do mundo no segmento de ecommerce. Conhecemos o trabalho realizado por eles, como também a sua fundação, que trabalha com pessoas com deficiência.
Visita a Jiaxing: referência em tecnologias para pessoas com deficiência
Visitamos o município de Jiaxing, que é referência na China no desenvolvimento de tecnologias assistivas às pessoas com deficiência. Na ocasião, a delegação do Rehabilitation Internacional foi apresentada a algumas delas, conhecendo profundamente o seu desenvolvimento, recursos e utilização. Tivemos uma tarde bastante agradável em Jiaxing, possibilitando um rico aprendizado e troca de informações. Terminamos o dia com um jantar oferecido pelo governo de Jiaxing, quando pudemos apreciar uma belíssima exposição de trabalhos desenvolvidos pelas pessoas com deficiência daquele município.
West Lake, o principal parque de Hangzhou
Conhecemos o Centro de Reabilitação da cidade de Hangzhou, onde há destaque para o importante trabalho realizado com as pessoas com deficiência intelectual, principalmente crianças. Fomos apresentados ao local onde foi realizado o G20 Hangzhou Summit 2016. Tivemos oportunidade de conhecer o West Lake, o mais famoso ponto turístico da cidade de Hangzhou, um passeio maravilhoso. Concluímos com um jantar de boas-vindas oferecido pelo governo de Zhejiang.
Abertura da Reunião do Comitê Executivo da Rehabilitation International (RI)
A cerimônia de abertura da reunião do Comitê Executivo do Rehabilitation International contou com a presença de lideranças de pessoas com deficiência de vários países do mundo. A reunião se estendeu por todo o dia e continuou no dia seguinte até o horário do almoço. Foi imensamente importante e produtivo participar desse encontro, com demandas desafiadoras para a assembleia que ocorrerá em novembro na Alemanha e a para a próxima reunião do Comitê Executivo, que possivelmente será no Brasil, em 2019.
Fui convidada a almoçar com a Secretária Geral do RI, Venus Ilagan, para avançarmos na discussão de possível realização da reunião no Brasil. O resultado desta reunião foi bem positivo e estou animada e empenhada a trazer estes líderes mundiais que promovem a inclusão das pessoas com deficiência para o nosso país.
A tarde era livre, mas chovia muito e apenas rodei perto do hotel acompanhada da intérprete. Quando voltei, mas precisamente quando entrei no meu quarto, a Julinha não quis mais funcionar. Parecia um problema elétrico. Ela ligava, chegava a acender a luz e em seguida apagava. Nem preciso dizer que meu coração acelerou, né mesmo? Mas, para quem tinha a Yang por perto, foi mais leve esperar socorro. Imediatamente a garota disse que iria chamar o técnico do hotel e também lembrou que quando chegava ao hotel pela manhã viu uma loja que consertava mototos e iria lá chamar algum funcionário para nos ajudar.
O técnico do hotel disse que não tinha conserto. O dono da pequena loja de mototos apareceu quase às 9 horas da noite, mas resolveu o problema. Ele trocou o sistema de ignição, que simplesmente havia pifado.
Meu voo para Amsterdã sairia no dia seguinte às 10 horas da manhã. Nem preciso dizer, também, que esta foi a melhor noite de sono que tive durante minha estada na China.
Yang e vários outros voluntários me acompanharam no café da manhã. Viajei no mesmo voo que um dos representantes da Alemanha. Yang nos acompanhou até a entrada da sala de embarque no aeroporto. E assim deixei a China, muito feliz e com vontade de quero mais!