Apontamentos acerca do novo Decreto de Calçadas que a prefeitura de São Paulo está propondo
por Leticia Sabino
No dia 21 de junho foi publicado no Diário Oficial um comunicado sobre o que a prefeitura chamou de “consulta à sociedade civil” com relação a um decreto de padronização das calçadas. A tal “consulta” foi proposta através de envio de e-mail à Comissão Permanente de Calçadas, responsável pela criação do decreto, no prazo de 10 dias corridos — o que terminaria no dia 1 de julho, mas que teve ampliação de mais 15 dias, encerrando no dia 16 de julho. Após conhecer a proposta, promover a participação e enviar nossa sugestão à Prefeitura, este texto tem como objetivo dar visibilidade e relatar sobre o novo decreto de calçadas da cidade.
A nota no Diário Oficial dizia que a consulta se dava “considerando a importância de padronizar as calçadas e os passeios para a melhoria da mobilidade e da qualidade de vida dos munícipes, com vistas a permitir o deslocamento de qualquer pessoa, bem como favorecer as interações sociais e valorizar o ambiente urbano”.
Os primeiros questionamentos acerca é: se a prefeitura entende a importância do tema para a vida de todo os cidadãos e cidadãs, porque não estimulou e criou verdadeiros espaços e formatos de participação social? Por que os espaços formais já existentes de participação social relacionados ao tema, como o Conselho Municipal de Trânsito e Transportes e a Câmara Temática de Mobilidade a Pé, não foram convidados a participar da construção? Por que a própria plataforma da prefeitura para ampliar a participação social, o gestão urbana, não foi utilizada para esta consulta?
Quem ajudou a dar visibilidade a esta consulta foi a imprensa, fazendo matérias em espaços de grande circulação sobre a “consulta” por e-mail. Porém, além desta forma de participação ser insuficiente, a participação era inacessível. Isso é, como o texto era jurídico e técnico, é muito difícil que cidadãos possam acompanhar e contribuir sem nenhuma mediação e esclarecimento. Sabe-se que a Comissão recebeu receberam cerca de 200 e-mails.
Como por princípio e atuação do SampaPé! só acreditamos na construção de cidades caminháveis e acessíveis para as pessoas junto com as pessoas — e criamos projetos e metodologias de engajamento comunitário e participação, como pode ser visto neste webinar realizado com o WRI — organizamos no dia 30 de junho junto com a Cidadeapé um encontro aberto para mais pessoas participarem desta discussão e construírem juntas as sugestões e questionamentos a serem enviados. Atuando assim como mediadoras e amplificadoras da participação, sem nenhum vínculo com a prefeitura.
O encontro reuniu cerca de 40 pessoas de diferentes regiões da cidade a fim de entender o que era este novo decreto e participar, entre os/as participantes haviam representantes de outras organizações e grupos, como da OAB, ANTP, Conselho Participativo, Associação Laramara (de apoio à pessoa com deficiência visual) entre outras. Dividimos todos e todas presentes em 6 grupos que lidavam com partes distintas da lei para conseguir discutir de forma mais aprofundada e propor mudanças.
A Comissão Permanente de Calçadas (CPC) foi instituída no dia 15 de março de 2017 por decreto do então prefeito João Dória, no âmbito do programa Calçada Nova, vinculada à Secretaria de Prefeituras Regionais. Em 2018, Bruno Covas fez algumas alterações levando a Comissão para o seu gabinete e acrescentando um representante do seu gabinete — ele comenta sobre isso no episódio do Sentindo nos Pés que gravamos com ele.
A CPC é composta por 13 pessoas que representam diferentes órgãos, sendos estes: a Secretaria Municipal das Prefeituras Regionais — SMPR, Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência — SMPED, Secretaria Municipal de Serviços e Obras — SMSO, Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento — SMUL, Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente — SVMA, Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes — SMT, Companhia de Engenharia de Tráfego — CET, Comissão Permanente de Acessibilidade — CPA, São Paulo Urbanismo — SP Urbanismo, São Paulo Obras — SP Obras, Departamento de Iluminação Pública — ILUME, Empresa Metropolitana de Planejamento da Grande São Paulo S/A — EMPLASA e Gabinete do Prefeito.
De um lado há que se comemorar, pois de forma inédita há uma instância formal dentro da prefeitura com foco em calçadas, uma das estruturas mais importantes da rede de mobilidade a pé, reunindo diversas secretarias que se relacionam com este espaço de forma lidar com o tema de forma transversal. Mas por outro, é preciso reconhecer que a Comissão não tem abertura para os cidadãos, cidadãs e organizações da sociedade civil e que não estão lidando com as suas responsabilidades da froma devida e para gerar melhorias reais na realidade de quem caminha na cidade.
A criação da CPC corresponde a uma das metas do Plano de Mobilidade Urbana Municipal (PlanMob) elaborado em 2015, que definiu: “Instituir até primeiro semestre de 2016, Grupo Executivo Intersecretarial para discutir e definir novo arranjo institucional para responder pela construção, reforma, adequação e regularização de calçadas, bem como pela consolidação de uma rede de circulação de pedestres;”
Como mencionado acima, com um ano de atraso, ou seja, em 2017, criou-se a CPC, que de acordo com o PlanMob deveria englobar em suas atribuições algumas das demais metas estabelecidas pelo PlanMob, como:
A intenção da CPC em criar um Decreto de Calçadas foi em consolidar várias leis relacionadas a calçadas já existentes e normas de padrões técnicos em um só documento, facilitando assim a consulta e compreensão. A base principal do decreto é outro já existente de 2005 que versa sobre o passeio livre. Este decreto, até hoje, 13 anos depois, serve como referência para muitas cidades do Brasil, não só pelo que instituiu mas principalmente por ter se traduzido em um cartilha cidadã com fotos e desenhos.
A proposta atual não cria novas regras, apenas unifica o que já existe na legislação sobre calçadas, mas nem mesmo tudo é agregado. É possível ver a proposta completa do decreto atual neste link.
O maior benefício da criação da atual minuta de Decreto de Calçadas foi trazer à pauta mais uma vez o descaso das nossas calçadas e a omissão do poder público em garantir conforto e segurança aos deslocamentos a pé, ainda que já seja previsto por lei padrão e fiscalização.
Porém, conforme observamos internamente e no evento de participação, tanto o que se define e como se define deixam muito a desejar àqueles que colaboram com a construção de uma cidade mais caminhável. Logo no início, um erro grave do decreto é em não ter seus princípios claros com relação a priorizar quem caminha e garantir segurança e qualidade dos deslocamentos a pé.
Em todo o desenvolver da lei, outro problema está em deixar muitas questões em aberto a serem definidas resoluções posteriores feitas pela Comissão Permanente de Calçadas. Desta forma, aumentando seu poder de decisão sem prever nenhum tipo de participação ou pareceres técnico. Algumas destas questões são, por exemplo, sobre os materiais que poderão ser usados nas calçadas e os parâmetros de sinalização tátil. Fomos enfáticos em propor que estas resoluções devem ser feitas com maior participação social e que o decreto já deve estabelecer este modelo, além de amplo apoio técnico.
Outro ponto que destacamos sobre o decreto é não garantir mudanças reais na cidade. Isso fica claro ao não definir sobre um dos elementos mais responsáveis pela atual condição da cidade: a governança das calçadas. Em outras palavras, quem deve construir e fazer manutenção das calçadas, uma das principais infraestruturas do modo de deslocamento mais utilizado na cidade.
Atualmente a responsabilidade das calçadas é dos proprietários, porém quando se fala em leito carroçável a responsabilidade é do governo municipal. Assim, continua em questão como iremos solucionar o problema da construção das calçadas. Além disso, mesmo as calçadas de responsabilidade do poder público, que podem ser adequadas sem modificar a governança, o decreto não estabelece a obrigatoriedade de adequação, nem prazos e punições. Na gravação do Sentindo nos Pés com o presidente da SP Urbanismo, José Armênio, tivemos conhecimento de um levantamento da empresa municipal de urbanismo que afirma que 18% das calçadas da cidade são de responsabilidade pública. E que aproximadamente 80% dos fluxos a pé ocorrem nestes 18% de calçadas. De acordo com o PlanMob, o prazo para a adequação das calçadas de responsabilidade pública é até 2020. Por isso, também sugerimos que o decreto reafirme este prazo, e ainda defina como ocorrerão as fiscalizações e sanções caso não seja cumprido.
Quando a lei discorre sobre mobiliários urbanos, estes são considerados apenas serviços e elementos que ocupam as calçadas. Primeiramente é preciso que os mobiliários sejam encarados como elementos que tem como função e objetivo gerar mais conforto e segurança para os caminhantes. Desta forma, algumas de nossas sugestões sobre o que está na lei são: estabelecer padrões e metas para implementação de bancos para sentar nas ruas da cidade; tirar mobiliários urbanos que geram sensação de insegurança, principalmente os que podem ser um espaço de esconderijo — observações que foram apontadas no Mulheres Caminhantes, projeto com perspectiva de gênero do SampaPé! — ; e re-alocar grandes mobiliários para o leito carroçável quando houver faixa de estacionamento, deixando mais área de calçada para as pessoas.
Ainda sobre os mobiliários o decreto fala em condensar os postes quando possível, para não acontecer situações como as da foto acima, mas não diz quem vai fazer, como deve ser feito, prazos e sanções. Erro que se repete em diversas resoluções do decreto como já apontado. Além disso, nem mesmo se relaciona com a lei de aterramento de fios que colabora muito com o espaço das calçadas e o conforto do caminhar. E não trata o tema de iluminação pública e sinalização tátil e acessibilidade com a devida responsabilidade.
Por fim, outro ponto que foi bastante debatido e permeou nossas sugestões foi com relação a falta definição sobre informação e capacitação. Ou seja, desde ter materiais acessíveis à população sobre os critérios das calçadas, até treinamento interno, nos órgãos da prefeitura para que funcionários públicos possam orientar cidadão, e também treinamento de mão de obra de acordo com o padrão.
O Decreto pode e deve ser uma oportunidade de enfrentar alguns dos problemas que fazem São Paulo uma cidade não caminhável e agressiva para as pessoas se deslocarem a pé, porém para isso terá que sofrer muitas alterações e principalmente entender que a construção de uma cidade melhor para as pessoas só é possível quando as pessoas participam desta construção e são colocadas no centro das resoluções e leis.
O documento completo com as nossas sugestões foi enviado por e-mail à CPC e pode ser acessado no link.