Texto e fotos: Uirá Lourenço
784 árvores, esse é o total de árvores marcadas na região entre o bairro Sudoeste e o Parque da Cidade. Centenas delas já foram derrubadas, incluindo paineiras, cambuís, palmeiras e diversas árvores frondosas. Mais de 50 pinheiros altos na entrada do parque também foram abatidos. O motivo de tamanha devastação? A construção de um trevo rodoviário, com pistas de acesso e viadutos na Estrada Parque Indústrias Gráficas (EPIG), para escoar a grande frota motorizada por dentro do parque. A notícia do Governo do Distrito Federal (GDF) não deixa dúvida quanto ao objetivo do projeto: ‘Viaduto no Sudoeste vai beneficiar 50 mil motoristas diariamente’.
Poderia conceituar rodoviarismo como o modelo de cidade centrado no automóvel, com projetos e ações que ampliam os espaços e a velocidade do fluxo motorizado, em detrimento da segurança no trânsito e das outras formas de transporte. Acompanho a mobilidade (ou melhor, a imobilidade) desde que me mudei para Brasília em 2005. Percebo que, ao longo dos diferentes governos, o grande foco é a fluidez motorizada por meio de alargamentos de vias e construção de túneis e viadutos.
A Saída Norte, complexo viário com diversos túneis e viadutos, que perpassou quatro governos da concepção do projeto até a conclusão das obras (Arruda, Agnelo, Rollemberg e Ibaneis), demonstra perfeitamente a opção pelo modelo rodoviarista. Ao custo de R$ 220 milhões, a obra concluída em maio deste ano ampliou bastante o espaço dos carros e os usuários de ônibus foram ‘esquecidos’. O blog tem texto com fotos sobre a Saída Norte.
Mas, afinal, do que se trata o projeto na EPIG que prevê a derrubada de quase 800 árvores? É apenas um viaduto, como dá impressão ao ver os anúncios do GDF? Para esclarecer, é preciso recorrer ao grupo de moradores do Sudoeste que se reuniu para contestar o porte da obra e a grande devastação. O grupo enfrentou dificuldade em obter informações sobre o projeto. Por meio de pedidos com base na Lei de Acesso à Informação, os moradores conseguiram documentos e se debruçaram na análise.
O projeto é de grande porte, com custo inicial de R$ 27 milhões, que vai impactar não apenas a via EPIG, mas também o bairro Sudoeste e o Parque da Cidade. Consiste na construção de um trevo rodoviário com pistas de acesso e viadutos, e na retirada de semáforos na busca por fluidez aos motoristas. Vale lembrar que a situação ao longo da via é bem ruim para pedestres, ciclistas e usuários de ônibus. A construção do trevo rodoviário só vai agravar as condições para os sem-carro.
Imagem do projeto do trevo rodoviário entre o bairro Sudoeste e o Parque da Cidade.
Péssimas condições na EPIG para pedestres, ciclistas e usuários de ônibus.
Além da grande área devastada, a ser impermeabilizada, haverá grande impacto negativo no Parque da Cidade, importante área de lazer na área central, em razão da construção de pistas e do aumento no fluxo de carros. Está em andamento ainda a construção de uma enorme bacia de contenção dentro do parque para armazenamento das águas de chuva.
Parque da Cidade: devastação e área destinada para a bacia de contenção.
Em audiência pública realizada de forma remota pela Câmara Legislativa (CLDF) no dia 2 de setembro, moradores do Sudoeste, especialistas em mobilidade urbana e professores frisaram os aspectos negativos do projeto. Os parlamentares que participaram da audiência – deputados distritais Arlete Sampaio e Fábio Félix e a deputada federal Érika Kokay – também criticaram a proposta. Infelizmente, nenhum representante do GDF participou do evento.
A notícia da Agência CLDF reúne a opinião dos moradores, especialistas e do promotor de justiça Dênio Moura (o Ministério Público – MPDFT – ajuizou ação civil pública com pedido de paralisação das obras) sobre a construção de pistas e viadutos na EPIG. José Humberto, professor de engenharia (UNB) e morador do Sudoeste, apresentou imagens na audiência pública e afirmou que o projeto não é de apenas um viaduto, mas de um trevo rodoviário, e ocupará uma área equivalente a 12 campos de futebol. “Vai tudo de encontro às escalas residenciais, bucólicas e gregária local”. Ainda segundo ele, a área do Parque da Cidade afetada soma cerca de 60 mil metros quadrados, resultando numa “supressão vegetal descomunal”.
Imagem da apresentação do Prof. José Humberto mostra os impactos do trevo rodoviário.
A derrubada de centenas de árvores é apenas o impacto negativo inicial do trevo rodoviário. Com menos áreas verdes e mais pistas, outros efeitos estão por vir:
– mudança no microclima e formação de ilha de calor
– insegurança para pedestre e ciclistas, que terão mais obstáculos (pistas e taludes) para transpor
– maior incentivo para o uso do automóvel e desestímulo ao uso de outras formas de transporte
– aumento do barulho e da poluição atmosférica em razão do aumento no fluxo de automóveis
– perda de área para abrigar a fauna, incluindo corujas, pica-paus, tucanos e araras
Corujas desabrigadas pelas obras do trevo rodoviário no Sudoeste.
Alta temperatura (40 °C) que deve se agravar com a construção do trevo rodoviário.
As imagens da Rosângela Ribeiro, moradora do Sudoeste, mostram bem o efeito devastador de projetos desse tipo. Do alto se nota a diferença na vegetação na entrada do bairro Sudoeste, antes e após a derrubada de árvores promovida pelo GDF.
Imagens de set/2021 (acima) e de dez/2020 (abaixo) mostram a devastação no Sudoeste. Fotos: Rosângela Ribeiro.
– Outros (maus) exemplos de rodoviarismo
a) EPTG – Linha Verde
Início das obras de ampliação da EPTG (setembro/2009).
Acompanhei outros projetos grandiosos, caros e com o objetivo principal de garantir fluidez motorizada. A Estrada Parque Taguatinga (EPTG) passou por grande ampliação, com obras iniciadas em 2009. O projeto curiosamente chamado de Linha Verde resultou na construção de vias marginais e viadutos, com grande retirada da vegetação.
Nesse período eu morava em Águas Claras e ia pedalando, diariamente, para a área central de Brasília. Enfrentava o fluxo motorizado intenso na EPTG. Foi nessa época que me acostumei a usar retrovisor na bicicleta, item essencial para monitorar os motoristas infratores que cortavam caminho pelo acostamento (vídeo do trajeto).
A Linha Verde, com transporte moderno e integrado, ficou na promessa (vídeo de anúncio do GDF). Aliás, o corredor exclusivo de ônibus ficou por muitos anos inoperante por falta de ônibus com portas do lado esquerdo. A ciclovia da EPTG levou quase 10 anos para ser construída, e o traçado padece da falta de continuidade. As imagens ao longo dos anos (abaixo) revelam que as obras reforçaram a dependência automotiva.
Imagens da EPTG ao longo dos anos: 2010, 2011, 2017 e 2019.
b) TTN (‘Terrível Trevo Norte’)
Ampliação das pistas na ponte do Bragueto. Projeto TTN, maio/2020.
Outro projeto devastador e claramente rodoviarista foi o Trevo de Triagem Norte (TTN), também conhecido como ‘Terrível Trevo Norte’, no final da Asa Norte. Às margens do lago Paranoá, com três pistas em cada sentido, a ponte do Bragueto passou a ter sete pistas em cada sentido, além de acessos laterais para outras vias.
As obras foram concluídas em maio de 2020 e, a exemplo da EPTG, foi entregue sem espaço exclusivo para os ônibus. A ciclovia segue o padrão no Distrito Federal, com graves problemas de falta de conexão.
Nas imagens de satélite (abaixo) nota-se o tamanho da devastação e da impermeabilização às margens do lago.
Região da ponte do Bragueto antes (2010, acima) e depois (2020, abaixo) do TTN.
– Cidades humanizadas
Existe vasta bibliografia que expõe dados e argumentos em favor de cidades humanizadas, convidativas para pedestres e ciclistas e que incentivam o uso do transporte coletivo. Bons exemplos também não faltam para inspirar os gestores públicos. Cidades como Amsterdã, Barcelona, Nova York e Paris têm revertido, há algumas décadas, a dependência automotiva.
Rua em Amsterdã: velocidade reduzida e espaço para ciclistas e o tram (bonde elétrico).
Os efeitos negativos da cidade pensada para o automóvel são bem conhecidos. Desde 1961, com a publicação do livro Morte e Vida de Grandes Cidades, a grande ativista Jane Jacobs já denunciava os problemas das cidades dos Estados Unidos em razão da grande quantidade de carros. Vale destacar um trecho do livro:
“A erosão das cidades pelos automóveis provoca uma série de consequências tão conhecidas que nem é necessário descrevê-las. A erosão ocorre como se fossem garfadas – primeiro, em pequenas porções, depois uma grande garfada. Por causa do congestionamento de veículos, alarga-se uma rua aqui, outra é retificada ali, uma avenida larga é transformada em via de mão única, instalam-se sistemas de sincronização de semáforos para o trânsito fluir rápido, duplicam-se pontes quando sua capacidade se esgota, abre-se uma via expressa acolá e por fim uma malha de vias expressas. Cada vez mais solo vira estacionamento, para acomodar um número sempre crescente de automóveis quando eles não estão sendo usados.” Jane Jacobs, Morte e Vida de Grandes Cidades, p. 389
No mesmo dia (30 de agosto) em que as motosserras começavam a derrubada de dezenas de árvores frondosas na quadra 105 do Sudoeste – para a construção do trevo rodoviário –, Paris anunciava o limite de velocidade de 30 km/h para os motoristas em toda a cidade. Segundo a notícia, a medida tem por objetivo ‘aumentar segurança e reduzir barulho e impacto climático’.
A coincidência na data – devastação na Cidade Parque e a redução da velocidade na Cidade Luz – serve para refletirmos sobre o rumo que queremos. Uma cidade que privilegia a fluidez máxima e a predominância do automóvel, em detrimento da segurança no trânsito e de outras opções de transporte (ônibus, metrô, VLT, caminhada e bicicleta). Ou uma cidade com qualidade de vida e áreas verdes preservadas e ampliadas.
VÍDEOS:
Três vídeos gravados no DF para refletir sobre a política rodoviarista ainda vigente.