Texto e fotos: Uirá Lourenço
Esplanada dos Ministérios vazia em dia de semana (3/3/2021).
Março começou com lockdown no Distrito Federal em razão do aumento expressivo nos casos de Covid-19. O movimento nas pistas caiu, assim como o barulho e os congestionamentos. É lamentável o cenário de crise e mortes em razão da pandemia. A crise reforça a necessidade de rever o modelo de transporte, de forma a incentivar os modos ativos (não motorizados). As pistas vazias são uma grande oportunidade de repensar a cidade e redistribuir o espaço tomado pelos carros ao longo das décadas.
As atividades ao ar livre e os deslocamentos a pé e de bicicleta têm sido incentivados em várias cidades do mundo: construção e alargamento de calçadas, criação de vias para ciclistas (temporárias e definitivas) e redução do limite de velocidade têm sido algumas das estratégias para impulsionar a mobilidade ativa. Caminhar e pedalar representam deslocamentos seguros, sem aglomeração, e ainda combatem o sedentarismo. Desde o início da pandemia, em 2020, cidades como Bogotá, Buenos Aires, Lisboa, Nova York e Paris promovem melhorias.
Momento favorável para as bikes: promoção de gasolina a R$ 6,10.
O distanciamento social, a alta na gasolina (superior a R$ 6 o litro) e o mercado aquecido de bicicletas, peças e acessórios favorecem os modos saudáveis de locomoção. Segundo a Aliança Bike (Associação Brasileira do Setor de Bicicletas), a venda de bicicletas cresceu 50% no ano passado.
– Ações Pró-Mobilidade
Podem-se imaginar várias intervenções para aumentar o número de pedestres e ciclistas em Brasília. O relevo plano, os caminhos arborizados e a quantidade significativa de vias para os ciclistas (cerca de 586 km de ciclovias e ciclofaixas, segundo a Secretaria de Mobilidade) reforçam o potencial da cidade.
a) Redistribuição do espaço urbano
Com menos carros em circulação e a valorização das atividades ao ar livre (ambientes confinados favorecem a disseminação do Covid), abre-se a oportunidade para distribuir melhor os espaços na cidade, incluindo vias e estacionamentos. Em Brasília se destacam os grandes espaços destinados ao automóvel. As avenidas largas e os grandes estacionamentos podem abrigar ciclovias ou ciclofaixas, praças e outros equipamentos públicos.
Eis alguns locais em que se pode converter espaço dos carros em calçadas e ciclofaixas. Na Asa Norte, em volta do centro universitário UniCEUB, a realidade mudou bastante: o espaço antes todo ocupado por carros estacionados agora fica vazio (fotos abaixo). Uma boa oportunidade de garantir caminho acessível e continuidade da ciclovia.
Asa Norte (UniCEUB): antes da pandemia, carros por todos os lados.
No ‘novo normal’ sem carros, o espaço pode ser redistribuído.
Na Esplanada dos Ministérios, próximo ao Congresso Nacional, a ciclovia termina de repente e o ciclista tem que se virar pela pista ou pelo gramado. Das seis pistas em cada sentido uma poderia perfeitamente ser convertida em ciclofaixa, próximo Congresso Nacional. Com a delimitação do espaço (pintura e balizadores) e redução do limite de velocidade pode-se garantir caminho seguro aos ciclistas.
Na Esplanada dos Ministérios, trecho crítico em que a ciclovia termina.
b) Redução da velocidade e travessias seguras
As vias expressas – de alta velocidade e com poucos semáforos – são comuns em Brasília. No Eixão, L4 e EPIA o limite é de 80 km/h. No modelo moderno de mobilidade, com prioridade aos modos ativos e coletivos de transporte, o foco das ações deve se concentrar na segurança e não na fluidez motorizada. Reduzir a velocidade é uma medida simples com ganhos significativos para todos: pedestres, ciclistas e motoristas. Em casos de atropelamento ou colisão de veículos, o risco de lesão grave ou morte aumenta drasticamente em razão da alta velocidade. Num atropelamento com o carro a 32 km/h, a chance de sobrevivência é de 95%; a 64 km/h, a probabilidade de sobreviver cai para 15%.
Alto limite de velocidade: Eixão e L4.
Além da redução no limite de velocidade, as autoridades de trânsito deveriam reforçar os pontos seguros de travessia, preferencialmente em nível e com semáforos, em vez das passagens subterrâneas ou passarelas que aumentam o percurso do pedestre e exigem manutenção frequente. É comum ver pedestres correndo, inclusive crianças, para sobreviver ao atravessar as vias perigosas da cidade.
Travessias de alto risco na W3 Norte e no Eixinho.
c) Construção de rampas, reforma e ampliação de calçadas
Em geral, as condições de acessibilidade em Brasília são muito precárias. Mesmo na área central faltam rampas para viabilizar o acesso de cadeirantes. Piso tátil e semáforos com sinal sonoro também são raros. Na movimentada W3 Norte, em dias de chuva, as crateras se enchem de lama e tornam a situação ainda mais difícil. Outro problema que se nota é a falta de calçadas; não é à toa que as linhas de desejo (ou ‘caminhos de rato’) estão por toda a cidade.
Cena comum: calçada deteriorada (W3 Norte) ou inexistente (Setor Hospitalar Norte).
Vale registrar o bom exemplo de reforma recente de calçadas em algumas regiões, concentradas na Asa Sul: W3, Setor Hospitalar e Setor de Rádio e TV. Projetos desse tipo – com melhoria das calçadas e redução do limite de velocidade (zona 30) – deveriam ser executados em todo o Distrito Federal.
Calçadas reformadas e acessíveis na Asa Sul: W3 (à esquerda) e Setor Hospitalar (à direita).
d) Caminhos seguros nas vias principais
Esse momento de valorização da mobilidade ativa poderia ser um impulso para criar caminho seguro ao longo de vias importantes como W3 e Eixão. Ciclovias ou calçadões compartilhados seriam um grande avanço, um símbolo para a cidade.
A W3 Sul passa por obras de revitalização e o canteiro central poderia abrigar um boulevard arborizado agradável para pedestres e ciclistas. Com o projeto de VLT e a revitalização da parte norte, teríamos uma W3 moderna e segura, onde se poderia percorrer a pé, de bicicleta ou outros modos ativos os 12 km da avenida.
Ciclistas na avenida W3.
O Eixão é outra via importante e sem qualquer infraestrutura para ciclistas. O agravante, neste caso, é o grande fluxo de carros em alta velocidade. Pedestres e ciclistas se viram do jeito que dá. É comum ver ciclistas na lateral da pista ou mesmo na parte central. Outra alternativa muito utilizada é o canteiro central do Eixinho, cujo gramado fica demarcado pela passagem de pedestres e ciclistas.
Ciclistas no Eixão: sem espaço seguro.
Canteiro do Eixinho: alternativa para pedestres e ciclistas.
Já foram apresentadas propostas de ciclovia ao longo do Eixão e dos Eixinhos. Um estudo sobre a segurança de pedestres (DER/DF, 2007) propôs ciclovia no canteiro central do Eixão. Em concurso nacional de arquitetura para a revitalização das passagens subterrâneas, realizado em 2011, as propostas selecionadas previam facilidades para pedestres e ciclistas. No projeto vencedor a ciclovia passaria ao longo do Eixão, conectada às passagens revitalizadas. Um projeto que recebeu menção honrosa previa semáforos para facilitar a travessia e ciclovia no canteiro dos Eixinhos. Por que não tirar boas propostas do papel? Seja ao longo do Eixão ou do Eixinho, a ciclovia ou calçadão compartilhado seria um grande símbolo de valorização da mobilidade ativa.
Proposta de ciclovia no Eixão (DER, 2007).
– Referências em mobilidade urbana
Existem muitos bons exemplos – cidades, livros e vídeos – para se inspirar. Além dos livros ‘clássicos’ que reforçam a necessidade de um modelo urbano voltado para as pessoas – tais como Morte e Vida de Grandes Cidades (Jane Jacobs), Cidades para Pessoas (Jan Gehl) e Cidade Caminhável (Jeff Speck) –, está disponível publicação ilustrada com exemplos práticos de intervenções em cidades do mundo inteiro: o Guia Global de Desenho de Ruas (associação NACTO, EUA). Eis uma das orientações do manual, para se ter uma ‘cidade ótima’: “Desenhe ruas que sejam seguras e confortáveis para todos os usuários. Priorize a segurança de pedestres, ciclistas e usuários mais vulneráveis, dentre os quais idosos, crianças e pessoas com deficiências.”
Exemplo de redesenho de via, com prioridade para pedestres, ciclistas e transporte coletivo. Guia Global de Desenho de Ruas, pág. 265.
Se as autoridades do governo local se derem conta da importância de reverter a dependência automotiva e priorizar os modos de transporte ativos e coletivos, de priorizar a segurança no trânsito em detrimento da fluidez motorizada, quem sabe teremos ao menos o saldo positivo na mobilidade quando passar essa pandemia.
Ruas seguras e atrativas promovem qualidade de vida e ajudam na recuperação do comércio. Que tenhamos calçadas largas e contínuas; ciclovias e ciclofaixas seguras e iluminadas; menor limite de velocidade nas vias, com mais zonas 30 (regiões de baixa velocidade); facilidades na integração da bicicleta com o transporte coletivo; sistema de transporte confortável e pontual, sem ônibus superlotados.
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Em julho/2020 apresentamos proposta de ciclofaixas em quatro locais, de forma a redistribuir o espaço viário e criar caminhos seguros e de fácil implantação. A sugestão, protocolada na ouvidoria do GDF, está disponível em: https://brasiliaparapessoas.wordpress.com/2020/07/09/ciclofaixas-em-brasilia/
O Guia Global de Desenho de Ruas está disponível gratuitamente, com versão em português: https://globaldesigningcities.org/publication/global-street-design-guide-pt/
– VÍDEOS:
Dois vídeos mostram realidades distintas de Brasília: a revitalização do Setor de Rádio e TV Sul, em andamento, e a travessia de alto risco no final da Asa Norte.