Este espaço do Brasília para Pessoas está aberto para colaboradores, para reflexões sobre mobilidade e qualidade de vida. Neste ano temos a meta de ampliar a participação. No primeiro texto de 2019 reforçamos o convite aos entusiastas do tema que queiram escrever textos, publicar solicitações dirigidas ao governo (o blog tem seção específica que reúne os pedidos) e participar de projetos e ações.
A Lia atendeu ao chamado e nos enviou um relato bacana sobre a experiência de usar a bicicleta no dia a dia. Antes do texto, uma breve apresentação de nossa colaboradora. Ela é produtora de TV, gosta de pedalar desde a adolescência e há quase 20 anos usa a bicicleta como um dos seus meios de transporte. Lia é mãe de duas pequenas ciclistas.
Lia com sua plaquinha personalizada, feita pela filha.
Perigoso é dirigir feito doido!
Lia Tavares
Li essa frase em uma faixa fixada junto à bicicleta branca em homenagem ao Raul Aragão e, desde então, ela não me sai da cabeça. Virou um mantra. Incorporei ainda como uma das principais respostas a essa pergunta recorrente: para uma mulher, andar de bicicleta não é perigoso?
A minha vontade é de responder logo com a frase da faixa, uma vez que nela tem implícito tudo o que eu gostaria de dizer. Mas, como coloco muita coisa na balança, resolvi escrever justamente pra reafirmar pra mim mesma as escolhas que faço; entre elas, o jeito de me locomover.
A começar pela pergunta. O que não é perigoso numa cidade grande? Se partirmos para o perigo de um furto, um assaltou ou algo pior, é melhor não sairmos de casa. Uma mulher que vai sozinha até um ponto de ônibus ou a uma estação de metrô corre esse risco em seu trajeto a pé e até mesmo na espera da condução. Se estiver de carro pode ser ainda pior, já que o próprio veículo é um bem valioso e não vai ser um vidro fechado que vai salvá-la de um possível infortúnio. Eu costumo achar até que é mais fácil a gente escapar de uma situação de perigo quando estamos de bicicleta, pois ainda temos a chance de dar uma boa acelerada que muito malandro não tem fôlego pra alcançar.
Nas cidades brasileiras a bicicleta é forte aliada das mulheres nos deslocamentos diários. Fotos: Uirá Lourenço.
“Mas está cheio de gente louca no trânsito!” Ah, sim, isso tá mesmo! Cheio de gente louca em todos os lugares, mas no trânsito elas se acumulam (e se transformam). Aqui em Brasília, no Plano Piloto, que é por onde eu circulo, temos o privilégio de ter muitas ciclovias ou calçadas cicláveis. Eu tento fazer a maior parte dos trajetos por elas. Só não uso quando não existem ou saio quando algo me deixa insegura de continuar (como a falta de iluminação ou pessoas que me pareçam oferecer algum perigo). Nessas horas é preciso atenção redobrada e alguma agilidade pra contar com os imprevistos ou com a falta de noção dos motoristas.
Eu costumo me comunicar muito! Balanço os braços, me faço ser vista e tento perceber se o motorista realmente me viu e se estamos entendendo o que que ambos pretendemos fazer. Se for preciso, vou pra a frente dos carros e sigo o fluxo. Faço parte do trânsito e o maior sempre tem que proteger o menor. Evito vias com velocidades médias muito altas ou que tenham maior circulação de ônibus e sigo as regras de trânsito. Não confio no bom-senso dos motoristas. Sempre parto do princípio de que poucos darão preferência e o que vier é lucro. Celular nas mãos de um grande número de motoristas é algo com o que devemos ficar atentos. Olhos nos olhos é tática imprescindível pra qualquer ciclista urbano, seja homem ou mulher.
Agora, sabe o que me tira do sério ao pedalar na cidade? Assédio. Pode parecer besteira, mas pra mim não tem coisa mais chata do que você estar se deslocando pra fazer qualquer coisa e ter que ficar ouvindo bobagem, enfrentando olhares e buzinas. E não estou falando de mim e muito menos que somente as ciclistas são assediadas em seu dia a dia. Sei bem o que absolutamente todas nós, mulheres, passamos em nossas rotinas ao circular pelas ruas da maneira que for, com a roupa que for. Mas acho que a bicicleta tem algum fator que faz com que os homens se sintam na liberdade de nos assediar ainda mais. Talvez porque passemos mais rápido e eles se encorajem mais. Talvez seja fetiche. Talvez seja somente mais uma das nuances do machismo cotidiano. Pode não haver só uma resposta, mas o fato é que isso é uma das coisas que mais me incomodam nos trajetos.
No Encontro Nacional Bike Anjo (ENBA), realizado em Belém, no ano passado, uma das rodas de conversa abordou as vantagens e os desafios do pedal feminino. Foto: Uirá Lourenço.
Eu até já fiz um experimento bem interessante pra tentar entender como funciona esse comportamento e essa lógica. Passei a observar a quantidade de buzinadas que recebo quando estou pedalando com trajes de ciclista (roupa colorida, capacete, luva, etc.) e comparei com as que ouço quando estou com roupas normais de trabalho. E adivinha? É impressionante a diferença! A moça que vai trabalhar leva MUITO mais cantadas do que a esportista! Fiquei tentando compreender o motivo disso e uma das conclusões que cheguei é a de que, por passar rápido pela ciclista-esportista, os caras não têm certeza se quem está pedalando é homem ou mulher e, na dúvida, não buzinam. Não é uma loucura?! Temos que nos fantasiar de homem pra simplesmente nos locomovermos sem sermos incomodadas? É muito doido! Infelizmente, para nos defendermos desse fator assédio acho que vai levar mais tempo. Eu não tenho uma estratégia certa. Às vezes, sigo calada e finjo que não ouvi. Outras vezes, saio xingando. Já até voltei e dei lição de boas maneiras para jovens que devem se desconstruir um dia. Não existe um padrão e por hora acho que o ideal é tentarmos mudar isso fora do trânsito. Cuidar do machismo estrutural em outras esferas e aguardar pelo resultado que a gente tanto almeja.
Mas tem muitas coisas que poderiam ser faladas sobre ser mulher e usar a bicicleta como meio de transporte. Poderíamos falar sobre roupa, suor, cabelos, maquiagem. Poderíamos falar sobre obrigações familiares, filhos, trabalho. Poderíamos falar sobre a estrutura nos nossos destinos pra receber quem chega de bici. Poderíamos não. Podemos, né? Então, vamos?
VÍDEOS:
– De bicicleta com as crianças para escola na Asa Norte
Em maio de 2018, durante a crise de desabastecimento nos postos de combustível, algumas crianças pedalam até a escola na Asa Norte. Entre as crianças, estão as duas filhas de Lia.
Esse vídeo do pateta no trânsito é de 1950, mas continua bem atual e é muitas vezes veiculado como forma de sensibilizar para a necessidade de boa convivência nas ruas. Tem muito a ver com a conduta de alguns motoristas a que Lia se refere no texto.