Texto e fotos: Uirá Lourenço
A capital federal é reconhecida pelo respeito à faixa de pedestre e recentemente comemorou o aniversário de 19 anos da campanha que consolidou o hábito de o motorista parar e aguardar a travessia do pedestre. Nos últimos anos também se buscou emplacar a ideia de Brasília como capital das ciclovias, em razão das vias construídas para os ciclistas.
Na verdade, a fama se deve mais ao marketing governamental do que à realidade das ruas. Ao sair sem carro por Brasília, o cidadão encontra condições hostis. Seja a pé, de bicicleta, ônibus ou metrô, as queixas dos usuários se acumulam nas seções de leitores dos jornais e nas redes sociais, como revela compilação de queixas no blog Brasília para Pessoas .
Exemplos de marketing governamental relativo ao pedestre (2015) e ao ciclista (2014)
Para o pedestre há dificuldades de vários tipos. Além de o respeito à faixa não ser mais como outrora (especialmente fora do centro de Brasília, o desrespeito à faixa é alto), quem caminha se depara com calçadas destruídas ou mesmo ausentes, calçadas invadidas por carros, rampas bloqueadas e ausência de iluminação.
O respeito ao pedestre deve ser analisado de forma mais ampla e não apenas considerando o fato de os motoristas pararem na faixa. Observa-se, ao longo dos anos, negligência em relação à mobilidade a pé. Enquanto vias têm sido ampliadas e recapeadas, as calçadas continuam em péssimo estado: em 2014, o programa Asfalto Novo promoveu, ao custo de R$ 770 milhões, amplo recapeamento das pistas para circulação motorizada. Em muitos caminhos sequer há calçada e mesmo na área central se veem muitos “caminhos de rato” (linhas de desejo), evidenciando a ausência de planejamento com foco no pedestre.
Bloqueio de rampa em frente ao Congresso Nacional | Calçada destruída pela passagem de carros no setor hoteleiro norte |
– Ações de educação e fiscalização de trânsito
A percepção de que o respeito à faixa se esvaiu ao longo dos anos é evidenciada pelas freadas bruscas e por constantes engavetamentos próximos a locais de travessia. As ações educativas nas ruas – com orientação sobre o respeito aos pedestres – são esporádicas, concentradas em datas comemorativas como a semana nacional do trânsito e o aniversário da campanha de respeito à faixa. E a baixa execução nos recursos arrecadados com multas de trânsito – segundo dados de 2015, aplicou-se valor dez vezes menor em campanhas educativas do que o orçamento autorizado – indicam que os recursos para educação no trânsito situam-se em patamar aquém do desejável.
Atropelamento de pedestre e engavetamento ocorridos em faixa de travessia na Asa Norte, em 2015.
Constata-se que a simples existência de faixa para travessia não garante segurança. As ações de educação e fiscalização devem ser permanentes, com o objetivo de garantir a travessia segura e também, considerando as infrações cotidianas na capital federal, garantir algo de extrema relevância: caminho livre aos pedestres.
Espaços públicos da região central – canteiros, calçadas e até quadra de esporte – tornam-se estacionamentos informais e, assim, se reduzem as áreas de lazer e convivência e se incentiva ainda mais a dependência automotiva. Um fator considerável para a dependência do transporte individual motorizado consiste na oferta gratuita de vagas: na capital federal não há estacionamento rotativo pago (“zona azul”) e se pode estacionar livre e gratuitamente, sem limite de tempo, nas vagas públicas de estacionamento.
Canteiros convertidos em estacionamento, no Setor de Indústrias Gráficas e em frente a centro comercial (Asa Sul)
Quadra de esporte convertida em estacionamento na Asa Norte
Merece destaque o fato de o próprio poder público não dar exemplo. Muitas vezes, veículos oficiais bloqueiam e invadem espaços voltados aos pedestres e ciclistas. Os bloqueios ocorrem até mesmo na Esplanada dos Ministérios, em frente aos principais órgãos do poder público federal. E tradicionalmente se suprime o espaço voltado a pedestres e ciclistas na Esplanada dos Ministérios, nos preparativos e durante o desfile cívico de 7 de setembro.
Cena comum: bloqueio total de calçadas e ciclovias promovido pelo próprio poder público
Na Esplanada dos Ministérios, o tradicional bloqueio de 7 de setembro e o bloqueio de calçadas em frente a órgãos públicos
– Novas calçadas e velho modelo sem conexões
Calçada em construção no canteiro do Eixo Monumental
Na campanha Calçada Cilada deste ano, a capital federal se destacou com o registro de inúmeras crateras e bloqueios no caminho dos pedestres. No total, foram 231 queixas registradas. Segundo informação do governo, veiculada em reportagem sobre as condições das calçadas reveladas na campanha, há projeto para reforma de todas as calçadas do Distrito Federal, mas se aguarda a disponibilidade de recursos para realizar licitação.
Curiosamente, neste mês de abril, o governo local iniciou obras de construção de calçadas ao longo do Eixo Monumental, nos dois lados do canteiro central, próximas a uma ciclovia já construída e com pouco movimento de ciclistas. As obras em ritmo acelerado, em área com baixíssimo fluxo de pedestres, contrastam com a inacessibilidade e o abandono das calçadas na região central com circulação intensa de pedestres, como os arredores da rodoviária do Plano Piloto e o setor de rádio e tv sul.
Carros ocupam diariamente canteiro e calçadas no setor de rádio e tv sul | Cratera na Esplanada dos Ministérios, em frente à rodoviária do Plano Piloto |
Pensando no planejamento de ações com foco no pedestre, seria esperado, especialmente no cenário de grande restrição de recursos públicos, priorizar obras e intervenções em áreas com maior circulação de pessoas a pé, onde as calçadas e as condições de acessibilidade estão em estado crítico.
Ao que tudo indica se seguirá o modelo equivocado adotado na construção de ciclovias. Serão construídas calçadas em locais “fáceis” (canteiros), com muita área verde disponível, e será “esquecida” a interligação dos caminhos em locais onde se precisa retirar espaço dos carros para garantir conexão segura das calçadas.
Interrogação pintada onde a ciclovia termina de forma abrupta (Asa Norte). | Estacionamento irregular em área propícia para ciclofaixa de interligação de ciclovias, no SIG. |
A Política Nacional de Mobilidade Urbana de 2012 estabelece de forma clara, como diretriz, a priorização da mobilidade saudável (modos “não motorizados” de transporte) e, entre os princípios, estão a acessibilidade universal e a segurança nos deslocamentos das pessoas. Na mesma linha, o programa do atual governador do Distrito Federal estabelece entre os objetivos: priorizar o transporte saudável (não motorizado) sobre o motorizado; facilitar o uso das calçadas pelos pedestres; promover acessibilidade às pessoas com deficiência ou dificuldades de locomoção.
No entanto se percebe que ainda há um longo caminho a trilhar rumo ao efetivo incentivo às caminhadas na capital federal. Além das grandes distâncias a enfrentar, o percurso costuma ser tortuoso: com carros no caminho, calçadas destruídas ou mesmo inexistentes e sensação de insegurança ao atravessar a via.
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– Álbum de fotos da (i)mobilidade em Brasília: https://picasaweb.google.com/112427601743437901602/ImobilidadeDF
– Vídeo revela as dificuldades de caminhar na Asa Sul: https://www.youtube.com/watch?v=MlueBV15sfE
– Vídeo na W3 Norte, importante via de Brasília, revela o sufoco dos pedestres: https://www.youtube.com/watch?v=3DHvut8jc0M
Artigo originalmente publicado no portal da ANTP: http://www.antp.org.br/noticias/ponto-de-vista/o-pedestre-em-brasilia-fama-x-realidade-.html