Wesley Ferro Nogueira
E mais uma vez a história se repete no Distrito Federal, infelizmente. Assim como aconteceu em 2017, quando o GDF decidiu e autorizou o DER/DF a suspender a faixa exclusiva destinada ao transporte público da EPNB, utilizando como justificativa o equivocado argumento de que se tratavam de “obras diretas para a fluidez do trânsito”, mais uma vez a gestão pública se posiciona contrária aos princípios da mobilidade urbana sustentável, se rendendo às pressões de segmentos organizados da sociedade que fazem uma defesa contundente e permanente para que o sistema viário possa ser cada vez mais apropriado por automóveis, quando vem a público anunciar que irá liberar o corredor exclusivo da EPTG para a circulação também do transporte individual motorizado.
EPTG tomada por carros, inclusive na faixa exclusiva de ônibus. Foto: Uirá Lourenço.
Naquela época, em 2017, o Instituto MDT produziu uma nota técnica reunindo uma série de elementos que procuravam demonstrar que aquela decisão governamental contrariava os dois principais normativos da mobilidade urbana, tanto o Plano Diretor de Transporte Urbano e Mobilidade do DF (PDTU), que atribuiu responsabilidade ao GDF para a necessidade da adoção de instrumentos visando à “restrição ao uso indiscriminado do transporte motorizado individual, em especial nas situações que levem ao congestionamento viário” (Artigo 5°, II), como a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), que expressa de forma incisiva sobre a urgência da revisão dos modelos de desenvolvimento, elegendo os modais ativos e o transporte coletivo como prioridades dentro do sistema viário e da política pública.
O corredor exclusivo da EPTG ficou muito tempo sem a circulação dos ônibus do Sistema de Transporte Público Coletivo (STPC), uma vez que a licitação do Sistema cometeu um erro básico grave: o projeto da então linha verde foi implantado com paradas do lado esquerdo da via, mas o edital de 2012 do STPC não exigiu que os futuros veículos para a operação tivessem portas de ambos os lados, inviabilizando a utilização do corredor.
Com a decisão inicial acertada do GDF para a inversão da circulação dos ônibus dentro do corredor e, posteriormente, com a entrada em operação de novos veículos de 3 concessionárias, agora já contando com as portas para embarque/desembarque de passageiros dos dois lados, a utilização efetiva da via exclusiva na EPTG proporcionou uma redução significativa no tempo de viagem dos usuários do STPC e deveria ter sido um potencial indicador para a implantação de outras faixas e corredores exclusivos dentro do DF, o que acabou não acontecendo.
Ao contrário, os investimentos pesados em infraestrutura viária no DF têm se concentrado na apresentação de soluções que são vendidas como alternativas para dar fim aos congestionamentos, muitas vezes destacando como objetivo o fortalecimento do transporte público, mas que são baseadas em pressupostos para garantir mais espaço para automóveis, vide todos os exemplos mais recentes: Trevo de Triagem Norte; Complexo da EPIG; BR-020; Túnel Rei Pelé; EPAR e ESPM.
A própria EPTG é um retrato claro da lógica rodoviarista dentro do DF: são três faixas na via central e mais duas na marginal para automóveis, em cada sentido, enquanto temos apenas uma faixa dentro da via reservada para a circulação do transporte público que, mesmo tendo espaço menor de ocupação no sistema viário, ainda é responsável pelo transporte de mais passageiros ao longo do dia nesse eixo de circulação, em que pese a quantidade imensa de automóveis que transita nessa Estrada Parque.
Então, é incompreensível que uma decisão governamental possa ser implementada, mesmo estando em rota de colisão com as diretrizes, princípios e objetivos da política de mobilidade urbana; ao não considerar a importância do corredor exclusivo para parcelas significativas da população que utilizam o sistema de transporte público e que tem sido beneficiada com a circulação dos ônibus em vias segregadas do tráfego para acessar a cidade; ao fomentar e estimular o uso de automóveis no espaço urbano, indo na contramão das exigências para a redução das emissões de poluentes visando mitigar as mudanças climáticas, mesmo com tantos sinais emitidos nos últimos anos pelo processo de aquecimento global.
À medida que a frota do DF caminha rápido para chegar aos 2 milhões de veículos (segundo dados do Detran de julho deste ano já é de 1,987 milhão), a revisão desse modelo, com o fortalecimento dos modais ativos e do sistema de transporte público, é o caminho natural que a grande maioria das cidades está fazendo ao redor do mundo. Aqui, ao contrário, não se avança na implantação de faixas e corredores exclusivos e ainda vem com essa medida equivocada de liberação da EPTG para autos; não se qualifica calçadas e não se promove a conexão da rede cicloviária com o sistema de transporte público e não se restringe a circulação de veículos.
Eixo Monumental com muitos carros. Foto: Uirá Lourenço.
A permissão para a circulação de autos no corredor exclusivo da EPTG é extremamente cruel, pois coloca o transporte público para disputar espaço em um local mínimo que seria reservado apenas para a sua operação, uma vez que esse enfrentamento já é feito no restante da cidade.
Essa desqualificação do transporte público tem um caráter perverso, pois vira um combustível para fomentar soluções ao transporte individual motorizado. A ampliação do sistema viário para garantir fluidez aos autos tem resultados tão satisfatórios e duradouros como uma frase escrita na areia da praia. E se observa na cidade que, a mesma reprodução dos velhos e tradicionais conceitos de que o transporte público não presta e que os modais ativos não têm papel relevante, também se manifesta de forma ampla em setores do parlamento, judiciário, governo e sociedade ao normalizar essas iniciativas que ampliam espaços para automóveis.
Dessa forma, o Instituto MDT vem manifestar de forma contundente o seu repúdio à essa decisão implementada pelo GDF em liberar o corredor exclusivo da EPTG para a circulação de automóveis, mesmo sob o argumento de que se trata de uma medida com caráter transitório. A Semob, como guardiã da mobilidade urbana sustentável, não pode se render à lógica rodoviarista que se pauta pela manutenção de uma improvável fluidez para automóveis.
Conclamamos o Judiciário, o Ministério Público, o Legislativo local, a imprensa e os segmentos da sociedade alinhados com a premissa de um modelo sustentável para reforçar a defesa da necessidade de revisão dessa medida adotada pelo GDF e o avanço em direção à construção de outro projeto de cidade, voltado para as pessoas, não para carros, e sintonizado com o combate às mudanças climáticas.
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* Wesley Ferro Nogueira é economista, atualmente é Secretário Executivo do Instituto MDT, colabora no Projeto “Pensar o transporte público na cidade planejada para o automóvel”, integra a Rede Urbanidade e é membro titular do Conselho de Transporte Público Coletivo do DF e do Conselho de Trânsito do Distrito Federal.
VÍDEO
Um retrospecto ao longo dos anos da EPTG (‘Linha Verde’), que foi ampliada e cujo corredor de ônibus demorou a ser implantado. Dá para ver nas imagens o foco na fluidez automotiva.