Brasília foi inaugurada no dia 21 de abril de 1960, a partir do projeto vencedor de um concurso, de autoria do urbanista Lúcio Costa. Com uma apresentação simples, na qual gastou apenas 25 cruzeiros, ele mostrava a ideia de uma cidade racional, que nascia de simples cruz. Anos mais tarde, em entrevista, Costa se confessou tristemente surpreso com a ocupação desordenada de Brasília pelas hordas de carros. Talvez ficasse feliz ao rever o Eixão quase vazio nestes dias de abril de 2020.
(Texto e fotos de Uirá Lourenço)
No atual período de isolamento social em razão do coronavírus, o movimento na cidade caiu drasticamente. Nas pistas, o resultado é bem evidente: mesmo vias movimentadas como a W3 e o Eixão estão com circulação reduzida de carros. Segundo notícia com dados do Departamento de Trânsito (Detran/DF), o movimento caiu em 56% em dias de semana, entre 11 e 29 de março.
Para quem se desloca a pé e de bicicleta há muitas vantagens: facilidade na travessia, possibilidade de compartilhar as pistas quando não existe calçada ou ciclovia, menos barulho e menos poluição. No dia 9 de abril (quinta-feira), de manhã, observei o movimento no final do Eixão Norte, próximo à ponte do Bragueto.
Ao contrário da dificuldade costumeira (pedestres e ciclistas correm entre carros em alta velocidade para chegarem vivos ao outro lado, como mostra o vídeo), era possível atravessar tranquilamente graças ao fluxo bem reduzido de carros. Uma cena impensável em dias de semana.
Janeiro/2020 | Abril/2020 |
Final do Eixão Norte: dificuldade diária e paz em tempos de Covid-19
No final da Asa Norte são bem evidentes os impactos negativos das ações governamentais com foco no transporte automotivo. Com as obras do TTN (‘Terrível Trevo Norte’), são sete pistas em cada sentido na ponte do Bragueto, além de vários acessos para as outras vias (L4, W3 e Eixinhos). Ou seja, mais área impermeabilizada próxima ao lago Paranoá, mais incentivos para o transporte individual motorizado e maior insegurança para quem se desloca a pé ou de bicicleta.
Alguns benefícios da cidade com menos carros:
– MENOS POLUIÇÃO DO AR E MENOS BARULHO
– MENOS CONGESTIONAMENTOS
– MENOR DEMANDA POR PISTAS E ESTACIONAMENTOS
– MAIOR EFICIÊNCIA NO TRANSPORTE E MENOS TEMPO DESPERDIÇADO NOS DESLOCAMENTOS
– MAIS RECURSOS PARA INVESTIR EM OUTROS SETORES E MODOS DE TRANSPORTE
– MENOS MORTES DE PEDESTRES POR ATROPELAMENTO
Além dos benefícios na mobilidade e segurança no trânsito, menos carros, ônibus e caminhões significam menos poluentes no ar. Procurei dados da poluição em março e abril para observar se houve redução durante o isolamento social. Na página do Brasília Ambiental (Ibram), órgão responsável por executar as políticas públicas de meio ambiente no DF, só estavam disponíveis dados até janeiro de 2020. Fiz solicitação pelo e-SIC (plataforma criada para atender à Lei de Acesso à Informação) para obter dados da estação de monitoramento instalada na rodoviária do Plano Piloto.
Infelizmente não pude comparar o nível de poluição, pois não há dados recentes e a rede de monitoramento no DF é bem precária, como afirmou o próprio Ibram na resposta à solicitação: “o Programa de Monitoramento da Qualidade do Ar do Distrito Federal não contempla o monitoramento da maior parte dos poluentes definidos como prioritários pela legislação”. São apenas cinco estações de monitoramento, com equipamentos manuais, que medem apenas partículas totais em suspensão (PTS), material particulado inalável (MP10) e fumaça preta.
Obras durante a pandemia
Nesse período de isolamento social as obras viárias continuam. Nas notícias do GDF destacam-se a reforma das tesourinhas (passagens para carros sob o Eixão), recapeamentos de pistas, alargamento de vias e a suposta revitalização do Eixão.
Ao avaliar as publicações do Departamento de Estradas de Rodagem (DER/DF) no Instagram, no período de 18/3 a 18/4, notam-se cerca de 30 informes sobre obras viárias. Apenas uma publicação, em 9 de abril, tem foco na mobilidade ativa: a inauguração da ciclovia entre o Gama e Santa Maria. Os outros informes referem-se a obras diversas com foco na fluidez motorizada, a exemplo do recapeamento na DF-001, concretagem na ponte do Bragueto, alargamento de faixa na DF-463 e operação buraco zero na EPNB.
Obras viárias em 27/3 e 6/4 (Instagram DER/DF ) |
Não encontrei notícia sobre a criação de mais faixas exclusivas e corredores exclusivos de ônibus para dar maior agilidade aos usuários do transporte coletivo. Apesar da ‘revitalização’ do Eixão, as passagens subterrâneas continuam em total abandono e não houve qualquer investimento em calçadas ou ciclovias ao longo da via expressa. Nenhum informe sobre novos pontos de travessia para pedestres, redução de velocidade para aumentar a segurança ou sobre bicicletários para incentivar a mobilidade ativa.
Melhorias na mobilidade pelo mundo
Nas notícias de outras cidades, destacam-se as ações voltadas para garantir segurança aos pedestres e ciclistas. No período de pandemia, a estratégia tem sido evitar aglomeração no transporte coletivo e incentivar as pessoas a caminhar e pedalar. Bogotá (Colômbia) ampliou as ciclofaixas ainda em março, no início da pandemia: foram criadas cerca de 117 km de novas vias temporárias para ciclistas.
Infraestrutura para incentivar ciclistas em Bogotá (Foto: Brent Toderian)
Nos Estados Unidos, Oakland lançou a proposta de ruas calmas (‘Slow Streets’) com o fechamento para os motoristas de cerca de 120 km de vias para que pedestres e ciclistas possam usar as pistas em segurança. Na Europa também há muitos exemplos de cidades que se esforçam para desafogar o transporte coletivo e aumentar a segurança de pedestres e ciclistas durante a pandemia, tais como Berlim, Bruxelas, Budapeste, Londres e Viena.
Um levantamento da Livable Streets relaciona mais de 100 cidades de vários países que implementaram medidas ou que têm planos para aumentar a segurança de pedestres e ciclistas.
Confiram também um vídeo da cicloativista Renata Falzoni que traz reflexões importantes sobre o atual momento de pandemia e a mobilidade ativa nas cidades.
Brasília, 60 anos
Nesta semana em que Brasília completa 60 anos, vale a reflexão sobre os rumos da cidade. Até hoje as ações governamentais se concentraram no rei automóvel. E boa parte da população reivindica mais pistas e viadutos para aliviar os congestionamentos diários. Não é à toa que a cidade é conhecida por seus habitantes com anatomia ímpar: cabeça, tronco e rodas (quatro rodas).
Como queremos a cidade nas próximas décadas? Uma Brasília com mais vias expressas e viadutos ou com ônibus modernos em corredores exclusivos? Mais calçadas e ciclovias conectadas a linhas de VLT e ao metrô ampliado?
Mobilidade ativa em Brasília:
Potencial para melhorar a saúde e aliviar o caos
Pode-se imaginar uma cidade que aproveita o relevo plano e as áreas arborizadas para criar boas rotas para pedestres e ciclistas. Não teremos festa para celebrar os 60 anos, para evitar aglomeração durante a pandemia, mas teremos motivos de sobra para celebração caso as autoridades se convençam da importância de ações voltadas à mobilidade e à qualidade de vida. Arrisco minha resposta à pergunta inicial: Sim, uma Brasília com menos carros é possível também após a pandemia, mas vontade política para mudar é fundamental.