Brasilia Para Pessoas

03
dezembro
Publicado por Brasília no dia 03 de dezembro de 2024

Texto e fotos: Uirá Lourenço

Vim a Afuá para conhecer a cultura da bicicleta, já tinha planos de conhecê-la há alguns anos. Me impressionou bastante, além da quantidade de bicicletas, o calor humano. O fato de a cidade não ter carros circulando (nem um sequer!) deve contribuir para o alto astral. Sem motor, sem barulho nem estresse. Eu e a Roni conhecemos muitas pessoas e papeamos bastante nos quatro dias.

A cidade é um encanto, com suas casas coloridas e os moradores sorridentes, de braços abertos (literalmente) pra receber. Demos sorte de passar o domingo do Círio, com procissão fluvial, quando a cidade fica tomada pelos devotos na celebração da Nossa Senhora da Conceição.

Sou paraense, nascido em Belém, e me envergonho de ter levado tanto tempo para conhecer esse tesouro no Marajó. Visitei Amsterdã e outras cidades holandesas em três ocasiões, atraído pela famosa cultura da bike, e deixei Afuá para depois. Como desculpa na demora para visitar, o fato de ser mais fácil chegar por Macapá e não por Belém.

Um detalhe interessante, que faz toda a diferença: as ruas são na verdade ciclovias (calçadas compartilhadas) suspensas por palafitas. O efeito da maré e os meses mais chuvosos fazem com que a cidade se adapte ao ritmo das cheias. Visitamos em período seco e fiquei curioso de ver a cidade tomada pelas águas.

Vou falar das pessoas para depois voltar às bikes. Os moradores de Afuá acolhem muito bem, sorriem e dão dicas mesmo antes de você pedir. Foi assim que conhecemos o Elival (apelidado de Ceará), que tem uma banquinha de sorvete e também vende água mineral de bicicleta. Ele nos chamou enquanto andávamos, nos deu dicas de lugar para visitar e nos apresentou ao Sarito, radialista conhecido na cidade. Como é uma cidade pequena em que todos se conhecem, você será prontamente identificado como turista.

Outra figura que conhecemos foi o Pedrinho, paulista de 37 anos que se encantou com a cidade e vende chopp no seu triciclo. No Pará chopp é sinônimo de din-din, sacolé. Simpatia em pessoa, apesar de sua história triste: caiu de moto ao pilotar alcoolizado, ficou três meses em coma e teve sequelas: dificuldade para andar (usa bengala) e para falar, um dos braços ficou paralisado. Ele nos deixou pedalar o triciclo adaptado e, no dia seguinte, nos mostrou sua casa e falou do seu sonho de ser influencer e seguir os passos do primo.

Bicicletas por todo canto da cidade.

Voltando ao tema que nos atraiu para Afuá, desde o momento que descemos do barco foi aquela alegria ver a quantidade e diversidade de bicicletas e de pessoas que pedalam: jovens, crianças e idosos. Os bebês vão no colo ou na garupa, agarrados em alguém. O navio atracou meia-noite e havia muitas bicicletas, incluindo os bicitáxis, aguardando para transportar os que chegavam.

As cargueiras levam de tudo, compras e gente. Os triciclos também são comuns, muitos são usados para venda de lanche e frutas nas ruas. Bombeiros, manutenção da rede de energia e serviços em geral utilizam quadriciclos. Os policiais fazem patrulha de bicicleta. Deve ser mais um serviço preventivo, porque a sensação de segurança é bem grande e os moradores comentam que a cidade é bem pacata e segura (como um dos moradores disse, ‘bandido não se cria por essas bandas’).

Moradores que usam triciclo no dia a dia: Rei das Coxinhas, dona Raimunda, Pedrinho e o tio do Abacaxi.

Crianças pequenas vão em pé na garupa, atracadas no pescoço do pai ou da mãe. Vi muitas senhoras pedalando.  Parei para conversar com duas idosas simpáticas: dona Raimunda, que vai de triciclo às compras, e tia Rai (70 anos), que também usa triciclo nos deslocamentos. Ela comentou sobre os benefícios à saúde de pedalar com frequência.

Bicitáxi e Escolas

Os bicitáxis estão espalhados pela cidade, levam até três passageiros, além do condutor e da bagagem. Muitos são equipados com sistema de som. São cerca de 40 circulando pela cidade, sem contar os quadriciclos utilizados pelas famílias para transporte próprio. Aproveitei para conhecer uma das oficinas que os fabrica. O Nico (dono da oficina) e o Vítor mostraram os diferentes modelos, que são feitos ao gosto do freguês, inclusive com a pintura do time preferido. Nas ruas vi táxi do Remo (time paraense), Palmeiras e, claro, do Mengão.

Oficina de bicitáxi.

É muito bacana ver a criançada pedalando, não só por lazer, mas também para irem sozinhas à escola. Passei por três escolas na segunda-feira (25/11): a frente e todo o entorno das escolas estavam tomados pelas bicicletas estacionadas.

Bicicletas estacionadas em volta de escola. 

Fizemos um passeio por uma hora no bicitáxi do Edson, todo vermelho (do Mengão) e com um som poderoso. O nosso condutor rodou boa parte da cidade, passando por locais mais distantes da área central. Algo que chamou atenção foi o movimento intenso de pessoas a pé e de bicicleta na rua (de dia e à noite), o comércio diversificado (padarias, mercados, vendas de açaí e lojas diversas) e a molecada brincando e correndo nas ruas (não vi uma criança sequer com celular na mão no rolê de bicitáxi). Certamente o fato de não passar carro ou moto contribui bastante para a movimentação intensa.

Algumas atrações

Além da ausência dos motores nas ruas, Afuá tem outros atrativos. As casas coloridas são um charme e não se veem pichações. As casas que abrigam os órgãos públicos são bem cuidadas, assim como as praças e os banquinhos ao longo das ruas.

Um passeio imperdível é ver a Muralha, uma sumaúma (samaumeira, espécie de árvore amazônica) grande com raízes bem avantajadas, um verdadeiro espetáculo da natureza. É preciso pegar um barco para atravessar e ir até o outro lado do rio. Aproveitamos para nos refrescar com um banho no riozão. Já tinha visto grandes sumaúmas, a do Museu Goeldi – em Belém – tinha sido a mais impressionante até então.   

Maravilha da natureza: sumaúma gigante.

Foi uma feliz coincidência passar o Círio na cidade. No domingo (24/11) a cidade estava mais movimentada, colorida e alegre graças aos devotos de Nossa Senhora da Conceição. Barcos com muitos balões nos quais as pessoas participariam da procissão fluvial. Durante as noites no fim de semana do Círio teve seresta no Lagostão (lugar de dança e atividades culturais), barraquinhas de comida e bingo ao ar livre na praça em frente à igreja católica. Compramos cartelas de bingo e comemos maniçoba. De sobremesa, torta de cupuaçu.

Cidade bem movimentada e enfeitada no domingo de Círio.

Até o pacato aeroporto teve movimento durante o Círio. Um pequeno avião, que parecia de brinquedo, estava por lá. Aliás, uma curiosidade: a pista de pouso serve de local para caminhada e lazer dos moradores. Na segunda-feira pós-Círio pude ver o avião decolar (depois fiquei sabendo que o prefeito e o vice-prefeito voavam rumo a Belém) após esperar as pessoas que faziam a caminhada matinal liberar passagem.

Quanto à culinária, vale experimentar o camarão, o peixe frito com açaí e os quitutes vendidos nas ruas (coxinha, macarrão com camarão e torta salgada). Nos deliciamos com o verdadeiro açaí todos os dias (o litro por apenas 10 reais!). Precisaríamos de mais dias para degustar todas as iguarias.

Combo açaí, tapioca, farinha e camarão.

Depois do almoço, o ideal é dar uma pausa, tirar um cochilo e esperar o sol baixar. Aliás, o comércio fecha e as ruas ficam vazias no início da tarde. Então, faça como os locais, descanse e recarregue as energias para voltar a andar após 16h. Outro hábito local é pedalar só com uma mão, a outra segura o guarda-chuva (que serve para proteger do sol forte). É um desfile bonito ver as pessoas pedalando dessa forma. Compramos o nosso guarda-sol para pedalar no estilo afuaense.

Como chegar

A viagem de barco é um capítulo à parte na jornada. Existem duas empresas que fazem o transporte entre Macapá e Afuá. Os horários dependem da maré e só dá pra saber na véspera ou no dia da viagem. Em tese há duas opções diariamente: barco (com maior capacidade e duração de 5 horas) e lancha (menor e com duração de 2 horas).

Fomos e voltamos de barco. Estávamos despreparados e não levamos rede na ida. Foi um tanto desconfortável encarar as 5h de viagem sentado no banquinho de madeira, enquanto as pessoas balançavam e aproveitavam em suas redes. Não tivemos opção de lancha, no guichê em Macapá foi informado que só sairia o barco, às 19h.

Viagem na rede, ao balanço do rio.

Na volta tentamos comprar passagem para a lancha, mas a empresa informou que ela não sairia (em razão de manutenção), só teria barco no final do dia. E então decidimos comprar uma rede e corda para fazer a viagem no estilo amazônico. Acabou sendo melhor voltar no barco e ter a experiência de viajar sentindo o balanço do rio na nossa rede: deu pra ler, cochilar e começar esse relato. A lancha para Afuá deve ser mais uma das lendas da região. Segundo alguns moradores, as empresas acabam optando por concentrar os passageiros no barco e decidem deixar a lancha encostada (‘em manutenção’).

Palafitas da Veneza marajoara

A arquitetura afuaense é ímpar por estar suspensa em pilares de madeira (palafitas). As ruas (ciclovias) e as casas ficam elevadas. Notei que antigos trechos com palafitas de madeira foram trocados pelo concreto, e outros locais estão em obras para substituir. É curioso sentir a diferença ao pedalar nos dois tipos de piso. Entre o estádio e o aeroporto, a ciclovia suspensa de madeira estala e trepida bastante e dá para ver algumas pontas de prego.

Palafitas de madeira dão lugar ao concreto.

Segundo o radialista Adilson Recordações, outra figura amistosa que conhecemos, ‘Afuá é a terra de mulher bonita, da perna grossa, do festival do camarão, das pontes de concreto e palafita, o lugar mais bonito e hospitaleiro da Ilha do Marajó’. Que terra pai d’égua! Guardarei pra sempre na memória os sorrisos e a acolhida desse povo alegre.

Uma placa na entrada da cidade faz referência à Veneza Marajoara. Talvez fosse mais apropriado se referir à Holanda brasileira. Uma cultura da bicicleta incrível, que dá inveja a holandeses e dinamarqueses. Arriscaria dizer que se trata de um caso singular não só no Brasil, mas no mundo. É bom saber que, quando precisar aliviar a mente e dar uma escapada da Cidade do Automóvel, posso ir até ali no tesouro marajoara. Mais cômodo e barato do que a travessia oceânica até Amsterdã.

Até mais, Afuá!

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Álbum virtual com mais registros que fiz na cidade: https://flic.kr/s/aHBqjBTD8P

VÍDEOS

Gravei alguns vídeos em Afuá para mostrar o paraíso das bicicletas, atrações e curiosidades. No canal tem uma playlist especial!



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Uirá Uirá Lourenço
Morador de Brasília, servidor público, ambientalista e admirador da natureza, Uirá é um batalhador incansável pela melhoria das condições de mobilidade na capital federal. Usa a bicicleta no dia a dia há mais de 25 anos e, por opção, não tem carro. A família toda pedala, caminha e usa transporte coletivo. Tem como paixão e hobby a análise da mobilidade urbana, com foco nos modos saudáveis e coletivos de transporte. Com duas câmeras e o olhar sempre atento, registra a mobilidade em Brasília e nas cidades por onde passa, no Brasil e em outros países. O acervo de imagens (fotos e vídeos), os artigos e estudos produzidos são divulgados e compartilhados com gestores públicos e técnicos, na busca de um modelo mais humano e saudável de cidade. É voluntário da rede Bike Anjo, colaborador do Mobilize e membro da Rede Urbanidade.
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