Brasilia Para Pessoas

30
setembro
Publicado por Brasília no dia 30 de setembro de 2022

Fazia algum tempo que não passava pela EPIG (Estrada Parque Indústrias Gráficas) e me assustei com a dimensão da obra do viaduto. Na verdade, um trevo rodoviário, conjunto de pistas para dar mais agilidade aos motoristas. A região arborizada entre o Parque da Cidade e o bairro Sudoeste foi devastada e vai ser cortada por emaranhado de pistas e viadutos. A entrada do bairro, por onde passava a bela avenida das Jaqueiras (que também tinha ipês e outras belas árvores), ficou estéril e, em breve, será cortada por pistas expressas.

Avenida das Jaqueiras – agosto/2021 e agosto/2022.

O verde cede lugar ao asfalto. O bucolismo cede passagem à fluidez motorizada. E assim Brasília vai deixando de ser Cidade Parque em nome do suposto progresso automotivo. O Parque da Cidade perde área verde e se consolida como atalho para os motoristas, em vez de área de lazer, tranquilidade e contemplação.

Na década de 60 Jane Jacobs já alertava sobre o avanço do automóvel nas áreas urbanas dos Estados Unidos, em particular em Nova York. Após tantas décadas temos que relembrar a grande ativista do urbanismo. A crítica apresentada em Morte e Vida de Grandes Cidades é bem evidente na capital federal, onde cada vez mais áreas verdes se transformam em pistas e estacionamentos:

A erosão das cidades pelos automóveis provoca uma série de consequências tão conhecidas que nem é necessário descrevê-las. A erosão ocorre como se fossem garfadas – primeiro, em pequenas porções, depois uma grande garfada. Por causa do congestionamento de veículos, alarga-se uma rua aqui, outra é retificada ali, uma avenida larga é transformada em via de mão única, instalam-se sistemas de sincronização de semáforos para o trânsito fluir rápido, duplicam-se pontes quando sua capacidade se esgota, abre-se uma via expressa acolá e por fim uma malha de vias expressas. Cada vez mais solo vira estacionamento, para acomodar um número sempre crescente de automóveis quando eles não estão sendo usados.

Aos trabalhadores que usam ônibus e precisam atravessar a EPIG para chegar ao Sudoeste só resta esperar uma brecha entre os carros em alta velocidade e correr. Correr para não morrer é o lema. É impressionante a quantidade de pessoas que atravessam correndo. Mas as autoridades não têm olhos para os que se deslocam sem carro. O descaso se reflete no ponto de ônibus precário (uma estrutura de concreto sem qualquer informação sobre linhas e horários de ônibus), na falta de local seguro de travessia, na falta de calçadas e na ciclovia sem continuidade, que acaba de repente. 

Pedestres em apuros na EPIG, sem local de travessia.

Entrada do Parque da Cidade – menos árvores e sem espaço para pedestres e ciclistas.

Já acompanhei outras grandes obras rodoviaristas de incentivo ao automóvel, com destaque para o ‘Terrível Trevo Norte’ (TTN)1. As pistas acrescentadas no final da Asa Norte tornaram o ambiente muito mais hostil para pedestres, ciclistas e usuários de ônibus. O efeito no microclima é bem nítido: a grande área asfaltada (estéril, quase sem árvores) resulta num calor bem desagradável de dia. A região às margens do lago Paranoá, com grande vocação para lazer e turismo, ficou rodeada por pistas expressas. A travessia a pé ou de bicicleta é de altíssimo risco!

Terrível Trevo Norte (TTN): mais pistas e maior risco para pedestres e ciclistas.

Diversas publicações de estudiosos e grupos que atuam em favor da mobilidade mostram os problemas ao se priorizar o uso do automóvel. Alargar as pistas para resolver os congestionamentos é como afrouxar o cinto para tratar a obesidade. A solução para o caos se resume a investir nos modos de transporte coletivos e ativos (não motorizados) e desestimular o uso do carro. Ou seja, incentivar que as pessoas usem ônibus e metrô, caminhem e pedalem nos trajetos diários, em vez de usarem o carro.

Não faltam leis (distritais e federais), referências (livros e manuais)2 e exemplos de cidade que seguem os preceitos da mobilidade moderna e sustentável. O que falta mesmo é vontade política de mudar e avançar.  Vale lembrar que a Política Nacional de Mobilidade Urbana expressamente prioriza os modos coletivos e ativos de transporte. 

Ao andar pela cidade fica evidente o esgotamento da cidade. Calçadas e canteiros são engolidos pelos carros e se transformam em estacionamento. Não cabem tantos carros! Os números confirmam o ‘Carmagedon’ (aproveito para pegar emprestado o termo que aparece no filme Bikes x Cars) brasiliense: mais de metade dos deslocamentos são feitos por automóvel e a frota motorizada só aumenta (são quase 2 milhões no Distrito Federal).

Cena comum em Brasília: carros estacionados em calçadas e canteiros.

Em tempos de veículos compartilhados (bicicletas, patinetes e carros), aplicativos de transporte (com menor custo ao passageiro) e trabalho remoto (menor necessidade de deslocamentos), as obras grandiosas de incentivo ao uso do carro particular se revelam ainda mais antiquadas e fora de época.

Grandes obras voltadas ao automóvel. Fonte: Governo do Distrito Federal (GDF).

Brasília precisa se reinventar. Precisa aumentar a quantidade de faixas exclusivas de ônibus; ampliar as linhas de metrô3; dar mais conforto a quem usa o transporte coletivo; reformar e construir mais calçadas; conectar as ciclovias e integrar a bicicleta aos terminais de transporte; promover o caminhar e o pedalar como opções de transporte; cobrar pelo uso das vagas públicas de estacionamento e investir os recursos arrecadados em melhorias na mobilidade; fiscalizar o estacionamento irregular; reduzir os limites de velocidade. Dá para avançar e humanizar a cidade. Basta seguir os princípios da mobilidade sustentável.

Movimento de pessoas em ciclovia da Asa Norte.

Neste período de eleições, em vez de promessas de mais alargamentos de pistas, túneis, viadutos e estacionamentos, vamos cobrar dos candidatos um sistema de transporte integrado e com passagem mais barata, mais áreas de lazer e convívio, caminhos acessíveis e ciclovias iluminadas. Será que os candidatos estão atentos a esse tema4? Já imaginou quantos equipamentos públicos (por exemplo, escolas, bibliotecas, parques e praças) poderiam ser construídos com os recursos gastos em grandes projetos rodoviaristas voltados ao automóvel5?   

Chega de Terríveis Trevos, chega de tantas pistas e estacionamentos! Por uma Brasília humanizada e moderna.

________________________

1 O nome oficial é Trevo de Triagem Norte. Mas, diante dos impactos negativos e da concepção atrasada do projeto, é mais adequado chamar de Terrível Trevo Norte (TTN). 

2 O blog possui lista de publicações e filmes sobre mobilidade urbana: https://brasiliaparapessoas.wordpress.com/livros-e-filmes-sobre-mobilidade/

3 O Distrito Federal possui apenas 133 km de faixas e corredores exclusivos de ônibus e a extensão do metrô é de apenas 42 km, segundo a Secretaria de Transporte e Mobilidade.

4 A Rede Urbanidade, que reúne especialistas e ativistas com o objetivo de promover a mobilidade sustentável e o transporte coletivo no DF, elaborou Carta aos Candidatos nestas eleições de 2022 (notícia com link para o documento), com compromissos a serem assumidos com a mobilidade sustentável.  

5 Túneis e viadutos têm alto custo de construção e manutenção. Para exemplificar, o conjunto de pistas e viadutos da Saída Norte custou R$ 220 milhões. O túnel de Taguatinga tem custo estimado de R$ 275 milhões e o custo do trevo rodoviário na EPIG é de R$ 27 milhões.

VÍDEOS



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Uirá Uirá Lourenço
Morador de Brasília, servidor público, ambientalista e admirador da natureza, Uirá é um batalhador incansável pela melhoria das condições de mobilidade na capital federal. Usa a bicicleta no dia a dia há mais de 25 anos e, por opção, não tem carro. A família toda pedala, caminha e usa transporte coletivo. Tem como paixão e hobby a análise da mobilidade urbana, com foco nos modos saudáveis e coletivos de transporte. Com duas câmeras e o olhar sempre atento, registra a mobilidade em Brasília e nas cidades por onde passa, no Brasil e em outros países. O acervo de imagens (fotos e vídeos), os artigos e estudos produzidos são divulgados e compartilhados com gestores públicos e técnicos, na busca de um modelo mais humano e saudável de cidade. É voluntário da rede Bike Anjo, colaborador do Mobilize e membro da Rede Urbanidade.
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