Texto e fotos: Uirá Lourenço
Passei de bicicleta pela EPIG (Estrada Parque Indústrias Gráficas), via que margeia o Parque da Cidade e os bairros Sudoeste e Octogonal. Foram instaladas placas que anunciam o ‘avanço’: garantir fluidez para 25 mil carros por dia. Ao fundo da grande placa chama atenção o ponto de ônibus, precário e sem qualquer informação sobre linhas e horários.
Nada mudou desde os tempos que eu vinha de bicicleta de Águas Claras e passava por toda a extensão da EPIG, há exatos 10 anos. As calçadas (quando existem) continuam em estado original, desgastadas pelo tempo. Nem sinal de rampas ou piso tátil.
Vale lembrar que a via passou por obras recentemente. Na verdade, a suposta revitalização se resumiu ao recapeamento das pistas. Nada foi investido para melhorar as condições para pedestres, ciclistas e usuários de ônibus. A superlotação nos pontos de embarque a as crateras em volta escancaram o descaso.
Calçadas inexistentes ou com crateras na EPIG. Na foto à esquerda, vê-se o Palácio do Buriti ao fundo.
Pontos de ônibus precários e superlotados.
Ao avistar o Palácio do Buriti, sede do governo local, vem a questão: teriam as autoridades esquecido da acessibilidade garantida em lei?! É pouco provável que, de dentro das salas e dos carros oficiais climatizados, tenham noção do sufoco da massa trabalhadora na volta para casa. Certamente as autoridades precisam fazer algo simples – andar a pé pela cidade – para conhecer os obstáculos e priorizar o investimento em acessibilidade, no transporte coletivo e nos modos ativos (não motorizados) de transporte. É o que determina a legislação, incluindo o Estatuto da Pessoa com Deficiência, a Política Nacional de Mobilidade Urbana e as leis distritais, incluindo o Plano Diretor de Transporte Urbano (PDTU/DF).
O arquiteto dinamarquês Jan Gehl resume, no livro Cidades para Pessoas (pág. 7), a mobilidade moderna que os gestores públicos deveriam ter como meta:
A cidade sustentável é geralmente fortalecida se grande parte de seu sistema de transporte puder se dar por meio da ‘mobilidade verde’, ou seja, deslocar-se a pé, de bicicleta ou por transporte público. Esses meios proporcionam acentuados benefícios à economia e ao meio ambiente, reduzem o consumo de recursos, limitam as emissões e diminuem o nível de ruídos.
O fluxo motorizado intenso e veloz na EPIG desencoraja os que gostam de pedalar. Não é à toa que a maioria dos ciclistas observados na via é jovem, do sexo masculino. Requer-se porte atlético para encarar as condições hostis. O trecho de ciclovia sem continuidade tem pouca serventia para quem pedala.
Perfil do ciclista na EPIG: jovem, do sexo masculino.
Os locais de travessia – ou melhor, sem travessia – continuam os mesmos. As pessoas que vêm de longe (‘do Goiás’), incluindo domésticas e porteiros que trabalham nos prédios residenciais do Sudoeste e Octogonal, precisam esperar uma brecha entre os carros e sair correndo para alcançar o outro lado.
Pedestres em risco: ausência de semáforos e de faixas de travessia.
– Viaduto: ‘solução’ cara e ineficaz
Os congestionamentos na região se devem à grande frota motorizada em circulação. Não é por falta de pistas nem por excesso de semáforos que o trânsito trava. Basta parar por alguns minutos e observar o movimento nas pistas. Não precisa ser especialista em mobilidade urbana para constatar o óbvio: há carros em excesso, desproporcional à baixa quantidade (e qualidade) dos ônibus em circulação. A falta de prioridade para o transporte coletivo (ausência de faixa exclusiva ou corredor de ônibus) também chama atenção.
EPIG congestionada. A desproporção entre carros e ônibus é bem evidente.
Ao custo de R$ 27 milhões, o Governo do Distrito Federal (GDF) pretende construir um viaduto para direcionar o grande fluxo de automóveis dos bairros Sudoeste e Octogonal por dentro do Parque da Cidade. A notícia do governo não deixa dúvida sobre o objetivo do projeto: ‘Viaduto no Sudoeste vai beneficiar 50 mil motoristas diariamente’.
Nada mais equivocado! Segundo dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio (PDAD)1, 88% dos moradores do Sudoeste e Octogonal se deslocam de automóvel até o local de trabalho. A solução para o caos automotivo é reduzir a quantidade de carros nas pistas e estimular o uso do transporte coletivo e modos ativos e saudáveis de transporte, como a bicicleta. Esse é o caminho trilhado por cidades modernas pelo mundo.
Fila de carros em via de acesso ao bairro Sudoeste.
Em 2018, após o governo anunciar que pretendia construir o viaduto da EPIG, fiz amplo levantamento2, com muitas fotos, observações e relação com as leis sobre mobilidade urbana. O trabalho, protocolado nos órgãos responsáveis pela mobilidade no DF, deve ter ficado esquecido (engavetado, como se diz no jargão popular).
Alargar pistas e construir túneis e viadutos para solucionar os congestionamentos é como afrouxar o cinto para tratar a obesidade. Fico curioso em saber quais leis e referências (estudos e livros) embasam os inúmeros projetos que incentivam o uso do automóvel (segundo o GDF, são 49 novos viadutos projetados ou em obras!).
Todas as referências que conheço – de estudiosos de renome como Jane Jacobs, Jan Gehl, Jaime Lerner, Enrique Peñalosa e Jeff Speck3 – argumentam em favor de cidades humanizadas, com menos carros e mais incentivos para caminhar, pedalar e usar o transporte coletivo. Os efeitos benéficos na mobilidade urbana, qualidade de vida e economia são inúmeros.
Enquanto aqui ainda se constroem viadutos, em cidades do exterior vias expressas e viadutos são demolidos como estratégia para resgatar a vitalidade urbana. A publicação Vida e Morte das Rodovias Urbanas, do ITDP, apresenta exemplos concretos de remoção de rodovias em algumas cidades, como a bem-sucedida recuperação do rio Cheonggyecheon e criação de parque após a demolição de rodovia na cidade de Seul (Coreia do Sul).
O arquiteto e urbanista Jaime Lerner, que faleceu há dois meses, traz uma bela reflexão no livro Acupuntura urbana (p. 93):
Colesterol urbano é o acúmulo, em nossas veias e artérias, do uso excessivo do automóvel. Isso afeta o organismo e até a mente das pessoas. Logo elas começam a pensar que tudo se resolve com automóvel. Preparam então a cidade só para o automóvel. Viadutos, vias expressas… e as emissões de gases dos carros.
Fica a pergunta: quantos anos (ou décadas) ainda levará para as autoridades se convencerem de que o modelo rodoviarista de incentivo ao automóvel é caro, atrasado, poluente e insustentável?!
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1 Dados de 2018. A pesquisa é realizada pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) com o objetivo de conhecer as condições socioeconômicas da população.
2 O trabalho sobre a EPIG está disponível no portal Mobilize: https://www.mobilize.org.br/estudos/326/brasilia-i-mobilidade-na-epig–estrada-parque-industrias-graficas.html
3 O blog tem dicas de livros e filmes sobre mobilidade urbana e segurança no trânsito: https://brasiliaparapessoas.wordpress.com/livros-e-filmes-sobre-mobilidade/
VÍDEOS:
Os dois vídeos mostram a realidade na EPIG, a contradição entre as obras voltadas à fluidez automotiva e o descaso com quem usa ônibus, caminha e pedala.