Falta de estrutura no transporte coletivo afeta a vida das mulheres

A ONG Action Aid entrevistou 503 mulheres no Brasil e 86% delas dizem que já sofreram assédio em público em suas cidades, sendo 68% no transporte coletivo

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Fonte: The City Fix Brasil  |  Autor: Aloha Boeck  |  Postado em: 23 de agosto de 2016

Estação de trem em São Paulo

Estação de trem em São Paulo

créditos: Mariana Gil/WRI Brasil Cidades Sustentáveis

 

O transporte coletivo nem sempre é uma escolha das pessoas. Muitos só contam com essa opção para os seus deslocamentos diários, principalmente para chegar ao trabalho ou à aula. E o caminho, também, não se resume apenas ao trajeto feito dentro dos veículos. Chegar às paradas e estações faz parte do processo, que deve contemplar a demanda independente de gênero.

 

No entanto, as mulheres ainda sofrem mais no uso do transporte coletivo. A insegurança nos trajetos, somada à espera pelo próximo veículo nos pontos, piora a vulnerabilidade das passageiras, ainda mais à noite. Se, para as mulheres, as ruas já são mais perigosas, a situação piora quando não há solução aparente para que cada caminho não seja marcado pelo medo.

 

De acordo com o retrato do metrô de São Paulo, divulgado pelo governo do Estado, o passageiro habitual da rede metroviária é mulher, de 18 a 34 anos, de classe média. As mulheres correspondem a 58% do número de passageiros e os homens são 42%.

 

Mas outra pesquisa traz uma visão preocupante: recentemente, a ONG Action Aid entrevistou 503 mulheres no Brasil e 86% delas dizem que já sofreram assédio em público em suas cidades, sendo 68% no transporte coletivo.  Os dados foram divulgados em maio de 2016, mas em 2014 a organização já havia lançado a campanha Cidades Seguras para as Mulheres, para promover uma melhoria nos serviços públicos e tornar os espaços urbanos mais receptivos a mulheres e meninas.

 

Na época, um levantamento mostrou que 79% das mulheres entrevistadas em quatro estados brasileiros julgavam que a má qualidade dos serviços públicos dificultava suas vidas, o que limitaria o acesso de 33% delas ao trabalho e de 22% à educação. Ainda segundo o estudo, mais de 73% das entrevistadas já desviaram de seu trajeto por conta da escuridão de vias públicas e 70% já precisaram abrir mão de sair de casa em determinado horário por medo da violência.

 

Ou seja, para elas, a falta de estrutura do transporte coletivo vai além do desconforto causado pela superlotação ou demora. Chega ao risco real de assédio, interfere na escolha da roupa que será usada, amedronta. É um transtorno cansativo e que cerceia a liberdade.

 

A Action Aid acredita que a solução esteja na mudança de comportamento, com campanhas educativas e medidas protetivas. “Mas também é fundamental a melhoria na qualidade e quantidade da frota dos meios de transporte público, priorizando a oferta para as áreas de periferia e comunidades e capacitando motoristas e cobradores para lidarem com casos de assédio dentro dos coletivos”, diz a página da campanha.

 

Essa melhoria teria como princípio, portanto, uma condição de igualdade e segurança para todos os usuários, de todas as classes e todos os gêneros. E também passa pela educação da população, com mais respeito ao próximo – seja ele quem for.

 

Separar é a solução?

Desde 2006, o Rio de Janeiro adotou a política de vagões exclusivos para mulheres em horários de pico nos trens e no metrô da cidade. Neste ano, foi publicada uma lei que prevê multa para os homens que utilizarem esse espaço reservado. A mesma iniciativa já é praticada no Distrito Federal e em outras cidades de países como Japão, Egito, Índia, Irã, Indonésia, Filipinas, México, Malásia e em Dubai. No último mês de julho, a Câmara Municipal de Belo Horizonte aprovou o projeto que cria o vagão exclusivo e o texto seguiu para revisão e sanção ou veto do prefeito.

 

O “vagão rosa”, como é chamado, também foi proposto e aprovado em 2014 na Assembleia Legislativa de São Paulo, mas foi vetado pelo governador Geraldo Alckmin. Na época, dividiu opiniões sobre a eficácia da intenção de reduzir o assédio no transporte público, uma vez que não previa punir agressores, mas minimizar o acesso às mulheres.

 

Em nota publicada no blog Marcha Mundial das Mulheres, o grupo exigia o veto ao projeto baseado na opinião de que representaria um “retrocesso na luta histórica travada pelas mulheres para ocupação do espaço público. Ao instituir vagões que separaram homens e mulheres no transporte público, o projeto acaba por afirmar que, para que os homens parem de assediar as mulheres, é preciso mantê-las longe deles – restringindo o nosso espaço aos vagões rosa”.

 

Ainda segundo a publicação, o que precisa mudar é a mentalidade de que os espaços públicos são prioritariamente masculinos, colocando a mulher em uma posição de vulnerabilidade por estar ocupando um espaço que não lhe pertence. Por mais que um vagão exclusivo pareça proteger, para elas, homens e mulheres devem conviver em condição de igualdade, e a separação não ensina a respeitar.

 

Mais espaço na pauta da mobilidade

Em meio à polêmica, Ana Carolina Nunes e Nana Soares, usuárias do metrô, resolveram sugerir à empresa responsável pelo transporte algumas ações de combate ao assédio nos vagões. Estavam aparecendo na imprensa novos casos de assédio e a impressão de Ana Carolina era de que o metrô não tomava nenhuma atitude. Pesquisadora na área de Políticas Públicas, ela entrou em contato com a amiga jornalista, ativista na causa das mulheres, e juntas criaram um plano de ação que foi enviado para a empresa. A proposta contemplava ações de prevenção, responsabilização e aumento da confiabilidade do sistema, mostrando que a administração do metrô estava ao lado das vítimas. O enfoque era destacar o SMS denúncia, meio de contato para esses casos.

 

Ana conta que algumas ideias foram em frente, outras não. A campanha ganhou bastante notoriedade e também foi criada uma cartilha interna para que os agentes compreendessem como lidar com as mulheres que passavam por casos de assédio. “No início, eu sentia que faltava consciência de que o assédio era um problema da empresa, assim como os assaltos ou outros crimes que acontecem. Agora, está começando a melhorar. Acredito que tenha sido uma experiência positiva, que puxou um debate necessário”, conta.

 

No entanto, para ela, ainda faltam muitos aspectos a serem desenvolvidos, como assumir cada vez mais a responsabilidade, melhorar o mecanismo de denúncia para que a passageira tenha tranquilidade em não sofrer retaliações, integrar as denúncias a uma rede de inteligência de informação e, principalmente, falar mais sobre assédio, incentivando que as vítimas não fiquem caladas.

 

“O que eu mais entendo agora trabalhando mais próxima dos projetos de mobilidade urbana é que a falta de percepção de que o assédio é um problema é sintoma da falta de mulheres no meio da mobilidade, para tomada de decisão e para discussão. O transporte ainda é muito baseado nas ideias masculinas, até mesmo no desenho das estações. Nós só vamos conseguir mudar a qualidade do transporte coletivo para todos os gêneros quando as mulheres tiverem um papel maior. Nós precisamos de espaço para decidir”, ressalta a pesquisadora.

 

Para concluir, ela ainda defende que é preciso aumentar o espaço para debate sobre as soluções contra o assédio no transporte coletivo, pois as soluções são muito variadas. “Essa questão deve ser levada para as conversas sobre mobilidade como um todo. Eu queria muito que as empresas se abrissem para um debate sério, no nível das políticas públicas”, completa.

 

Um transporte público de qualidade deve atender às questões de segurança e infraestrutura de forma que responda adequadamente à demanda. A escolha não pode ser baseada apenas em necessidade e não pode representar uma ameaça ao dia a dia da população. Permitir que as mulheres não sejam vítimas em seu próprio caminho já é um grande passo para uma mobilidade mais adequada.

 

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