Uma cidade não é feita de pedras, mas de pessoas e ideias

A jornalista Amelia Gonzalez escreve sobre o documentário "São Sebastião do Rio de Janeiro - A formação de uma cidade"

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Fonte: Blog Nova Ética Social/G1  |  Autor: Amelia Gonzalez  |  Postado em: 13 de maio de 2016

Rio foi o maior ponto de desembarque de escravos d

Rio foi o maior ponto de desembarque de escravos da América

créditos: Reprodução

 

Caro leitor que mora no Rio de Janeiro, se você quiser se esquecer um pouco das agruras pelas quais tem sido submetido diariamente na cidade, tranque-se numa sala de cinema do grande circuito a partir do dia 26 de maio e assista a “São Sebastião do Rio de Janeiro – A formação de uma cidade”. O documentário, dirigido e produzido pela mineira Juliana de Carvalho, que também vai ser apresentado em São Paulo e Juiz de Fora,  pode parecer uma peça promocional, das muitas que já surgiram para comemorar os 450 anos da cidade. E, no fim das contas, é mesmo. A cidade é apresentada como protagonista de sua própria história de vida, contada desde quando por aqui chegaram os portugueses.

 

Portanto, procure não se inquietar com a ausência de críticas muito contundentes, porque não se faz uma peça para convidar visitantes destilando apenas azedumes. E a cidade, vista de cima como a maioria das imagens do documentário, que enchem a tela e os olhos do espectador, decididamente é, se não a mais bela, pelo menos uma das mais belas. Sua beleza natural, na verdade, não mereceria ter passado por tantas destruições e decisões equivocadas de governantes. Mas, assim é. E aqui e ali, ligando linhas e fios, o filme deixa possibilidades de uma reflexão maior. O espectador mais antenado sairá com a certeza de que o Rio de Janeiro podia ter ficado, sem dúvida, sem algumas das desconstruções e, talvez, até com menos construções nesses seus 450 anos. E bem que merecíamos melhor passado.

 

Nossas origens estão ali bem representadas. Não falo dos portugueses e espanhóis, mas dos escravos. O filme relembra o fenômeno mórbido e cruel que deu à cidade o título de principal porto de desembarque de escravos das Américas no século XIX. Foram meio milhão de africanos. Os primeiros que chegavam recebiam o tratamento desumano e eram vendidos ali mesmo, em frente ao Paço Imperial, onde hoje é a Praça XV. Isso, até o final do século XVIII.

 

“Esse desembarque e o desfile de negros doentes, seminus, incomodava profundamente as elites. E ao final do século XVIII, o Marquês de Lavradio, ao deixar o governo, determina que seja feita a mudança do comércio de escravos que era feito na Rua Direita, atual Primeiro de Março, a área mais nobre da cidade, para a região do Valongo, periférica”, explica a arqueóloga Tania Andrade.


Isolar os pobres e a sujeira na periferia para deixar à vista dos ilustres apenas o que eleva a imagem da cidade não é a única iniciativa que se tornou recorrente aos governantes do Rio nesses quatro séculos e meio.

 

Quando a Corte de Portugal, em fuga, decidiu se instalar no Paço, algumas obras foram feitas para abrigar as “ilustres personalidades”. E aí, de novo, talvez como sempre, sobrou para os mais pobres, que foram obrigados a “ceder” sua casa aos reis, como explica José Pessoa, arquiteto e urbanista.

 

“A chegada da Família Real ao rio em 1808 transformou completamente a cidade. O vice-rei preparou às pressas o Paço para receber o séquito, mas o local era insuficiente. Então foi criada a ‘lei das aposentadorias’, que consistia em dar poderes aos altos funcionários para escolher os imóveis que quisessem na cidade. Escolhido o imóvel, a polícia o marcava com as letras PR, que significava Príncipe Regente. A sabedoria popular logo traduziu por ‘Ponha-se na rua’,  ou ‘Prédio roubado’.

Esta cena me fez lembrar uma visita que fiz há pouco mais de dois anos ao Morro da Providência para fazer reportagem sobre casas daquele local que seriam demolidas para dar lugar ao Morar Carioca, ao Porto Maravilha, invenções recentes que pretendem vestir a cidade com melhor roupagem para receber os turistas na época das Olimpíadas. Cada casa que teria a má sorte de desaparecer recebia um letreiro em tintas azuis com a sigla SMH, que significa Secretaria Municipal de Habitação. Logo a sabedoria popular traduziu para “Saia do Morro Agora”. O carioca, esse teimoso, que consegue fazer piada consigo.

Nos cinco minutos finais, Sergio Besserman, economista e ambientalista que funciona como presidente da Câmara Técnica de Desenvolvimento Sustentável e de Governança Metropolitana da cidade, faz um alerta:

“A Baía de Guanabara é nosso passado, mas é nosso futuro, e está imunda. O mundo tem limpado suas baías, como Sidney, Tóquio, São Francisco. Se não limpar a Baía de Guanabara não é só uma agressão ao meio ambiente, à qualidade de vida das pessoas, isso já seria suficiente. Mas é mais: o Rio vai perder a marca que tem de cidade que tenta ser sustentável, e vai ser visto pelo mundo como ‘aquela cidade que diz: nós temos aquela Baía suja sim, mas não nos tocamos com isso’. Nós temos que começar a limpar a Baía de Guanabara na medida em que nos preocupamos com o futuro, que damos valor à vida dos que vão nascer, nós nos tornamos melhores, cada um dos cariocas, e a cidade também” .

A arquiteta e urbanista Margareth da Silva Pereira lembra que o Rio de Janeiro comenta sua relação com a cidade e lembra que o Rio começou antes mesmo de sua fundação:

“Uma cidade é feita de pedras ou de ideias. Porque são as pedras e são os homens também”.

O crescimento das favelas, caracterizadas por moradias insalubres mas locais onde a vida pulsa a cada beco, foi acontecendo ao longo do tempo de vida da cidade, e isso é mostrado. Ao mesmo tempo, em termos de mobilidade urbana, o Rio foi se tornando refém dos carros.

“Principalmente depois da mudança da capital para Brasília e que se cria um Departamento de Estradas e Rodagens na antiga Guanabara. O grande projeto do Carlos Lacerda, em seguida de Negrão de Lima,  é a abertura de túneis, de novas avenidas, e o desenvolvimento para a Barra, que é montado e centrado no automóvel. A estrada de Jacarepaguá com a Barra assimilou 15% do crescimento da cidade, as duas somadas dão 25% do crescimento do estado. A gente sempre diz: não tem espaço. Ora, mas não tem espaço pra quê? Tem espaço para automóvel? Não. E questão de decisão, tem que priorizar. Não existe essa, de que para implantar ciclovia não pode tirar o espaço do automóvel. Pode sim. Não só pode, como deve, é uma decisão política. Que tipo de cidade eu vou privilegiar? Eu quero poder estar na rua, eu moro num país tropical, preciso usufruir desse espaço externo. Temos que entender que todo esse sistema de ruas é espaço para homens, não é para meter uma máquina e engarrafar tudo. É um espaço para as pessoas estarem, as crianças poderem brincar”, diz Pedro Rivera, arquiteto e urbanista.

Estamos, certamente, muito longe disso. E vale lembrar que o filme vale a pena, também, pelas músicas.

 

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