Ao longo da história, testemunhamos inúmeros exemplos de como o modo de mover pessoas e coisas não apenas interfere no tempo de deslocamento, mas implica também em formas de viver e se relacionar nas cidades. Isso fica claro hoje, por exemplo, com a expansão do uso da bicicleta como meio de transporte, quando percebemos que não se trata apenas de um modo de se deslocar, mas também da abertura de diferentes formas de relação das pessoas com as cidades, propiciadas por uma nova forma de contato corporal entre os indivíduos, e destes com o espaço construído.
Mas nunca tinha percebido isso tão claramente quanto na semana passada, quando entrei pela primeira vez no metrô de Delhi, capital da Índia, e passei o dia utilizando este meio de transporte para me deslocar, depois de semanas percorrendo outras cidades a pé, de trem, de automóvel ou de autorriquixá, também conhecido como tuk tuk. Foi um choque: parecia que havia passado por um portal e entrado em outro planeta, silencioso, limpo, liso, longe da profusão de buzinas e sons das ruas, e de pessoas disputando espaço com motos, carros, vendedores, peregrinos, vacas, carroças e templos.
Às 6h da tarde, em uma estação onde se cruzam várias das oito linhas que compõem hoje os 213 km da rede atual do metrô de Delhi - a Central Secretariat -, a multidão se acotovela como em qualquer outra estação central, como as de Tóquio ou de São Paulo. Mas essa multidão com a qual convivi nas últimas semanas percorrendo a Índia, me lembrando sempre que estava em um país de 1,2 bilhão de habitantes, era totalmente diferente: não tinha cheiro, não tinha som, não tinha cor. Era como se aquele subterrâneo, além de um meio rápido de percorrer distâncias, fosse também uma espécie de filtro que, deixando para trás antigos modos de ser, impunha uma outra lógica, anódina, asséptica, homogênea.
Créditos de carbono
Não por acaso, E. Shreedharan, então diretor da Delhi Metro Rail Corporation, empresa pública criada em 1995 por uma parceria entre o governo nacional da Índia e o governo da capital federal para implantar a rede de metrô em Delhi, declarava à imprensa, em 2002, quando da inauguração da primeira fase da rede, que "o metrô de Delhi é mais do que um modo mais eficiente e menos poluído de transporte, ele transformará totalmente nossa cultura social, nos conferindo um sentido de disciplina, limpeza, e promovendo nosso desenvolvimento".
De fato, o metrô de Delhi foi um dos primeiros a receber créditos de carbono após o protocolo de Kyoto, em função da redução de gases de efeito estufa propiciada por sua tecnologia. Entretanto, estudos recentes têm demonstrado que um dos objetivos expressos da construção da rede –reduzir o congestionamento e a poluição da cidade, uma das mais poluídas do mundo– não foi de fato atingido, já que o consumo de carros e, sobretudo, de motocicletas (60% do transporte motorizado é em duas rodas), tem crescido sem parar, assim como as taxas de motorização, elevando os níveis de poluição e de congestionamento na cidade.
Na ausência de qualquer política de desestímulo ao uso de automóveis e motos, a implementação da rede de metrô tem provocado, na verdade, não a redução da poluição e do congestionamento, mas um processo muito intenso de reestruturação urbana, talvez o mais radical que a Índia já conheceu desde a ocupação britânica.
Neste processo, cidades-satélites como Gargaon e Noida, conectadas pelo sistema de metrô, têm testemunhado um boom de lançamentos imobiliários residenciais e corporativos, gerando verdadeiras novas cidades, muito semelhantes às "world class cities", cidades genéricas, cuja paisagem se reproduz mundo afora, convivendo –e conflitando– com as cidades tradicionais indianas.
O espaço nesta coluna é insuficiente para comentar de forma mais aprofundada o impacto dessas transformações em Nova Delhi e, sobretudo, avaliar quem ganha e quem perde com elas. Quis apenas registrar aqui o caráter estruturador das opções de transporte e mobilidade urbana, que vão muito além do tema do transporte em si, propiciando, bloqueando ou promovendo novas geografias não apenas espaciais, mas também econômicas, sociais e culturais.
*Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
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