Os números de atropelamentos na capital paulista assustam - apesar de apontar para uma tendência de queda se comparados aos dois anos anteriores, só em 2014 foram 2725 ocorrências do tipo envolvendo automóveis; 1557 envolvendo motos; 695 causadas por ônibus; 109 por caminhões e 22 causadas por bicicletas. Mesmo representando apenas 0,4% dos acidentes fatais na cidade, foram justamente dois casos envolvendo bicicletas que ganharam as manchetes dos jornais e acirraram discussões nas redes sociais.
O primeiro deles foi a morte de uma criança, vitimada por um veículo motorizado que invaidu o espaço destinado ao tráfego de bicicletas por onde passava o menino de 9 anos de idade. O segundo caso ceifou a vida de um senhor de 78 anos que atravessava a pé a avenida General Olimpio da Silveira, exatamente abaixo do Minhocão, onde foi inaugurada recentemente uma ciclovia. O caso chamou a atenção por ter sido causado por um ciclista, o que acendeu discussões políticas partidárias além de análises frias e inescrupulosas.
É neste cenário que a Cidadeapé, Associação Pela Mobilidade a Pé em São Paulo divulgou na manhã desta sexta-feira (21) uma carta aberta à gestão municipal e à sociedade. O documento, transcrito integralmente abaixo, também pode ser acessado na página da associação.
"Carta aberta à gestão municipal e à sociedade: Por uma cidade mais humana
As notícias desta semana foram muito tristes para a cidade. Duas mortes no trânsito tiveram destaque na mídia: Thiago Pimentel, de 9 anos, atropelado por uma van enquanto pedalava pela ciclovia da av. Bento Guelfi, na zona Leste, e o sr. Florisvaldo Carvalho da Rocha, de 78 anos, atropelado por uma bicicleta enquanto atravessava Avenida Gal. Olímpio da Silveira (sob o elevado Costa e Silva, mais conhecido como Minhocão).
Estes casos evidenciam o modelo urbano falido de São Paulo: um conjunto de infraestruturas incapazes de garantir segurança e conforto nos deslocamentos dos mais frágeis, somado a uma cultura individualista no trânsito. Esse modelo resultou, apenas no ano de 2014, na morte de 1249 pessoas no trânsito, dos quais 45% eram pedestres (555 pessoas), ou 1,5 pedestres mortos todos os dias em colisões, atropelamentos, choques, entre outros (Relatório de acidentes de trânsito fatais, CET 2015). Os números exorbitantes atestam a urgência de se dar a devida atenção à infraestrutura da mobilidade a pé na cidade - que hoje é insuficiente e pouco discutida.
Vivemos em um grande centro urbano que foi construído priorizando a fluidez dos veículos automotores em detrimento das pessoas. As altas velocidades, os tempos semafóricos mal calculados e as largas avenidas e calçadas insuficientes não são compatíveis com a marcha de quem se desloca a pé. Pedestres se espremem, disputando espaços, nas calçadas e canteiros centrais, enquanto ciclistas sofrem ameaças ao compartilhar as faixas de rolamentos com os veículos motorizados.
Estamos assistindo a cidade de São Paulo passar por mudanças importantes na área da mobilidade. A ampliação da infraestrutura cicloviária, a qual apoiamos, é um grande avanço para a promoção de uma cidade mais humana. Essas transformações, no entanto, chamam cada vez mais a atenção para a vulnerabilidade das pessoas que se deslocam a pé e evidenciam a negligência histórica tanto por parte das autoridades quanto da população em relação a elas. Vale destacar que, na cidade de São Paulo, um terço de todos os deslocamentos diários são feitos exclusivamente a pé (Pesquisa Origem-Destino, Metrô 2007), o que torna esse modo de transporte o mais utilizado. Acreditamos que a responsabilidade é partilhada entre quem desenha as vias e quem as utiliza, por isso são necessárias ações urgentes tanto na parte estrutural quanto cultural.
Por um lado, a infraestrutura, o desenho e a sinalização de trânsito da cidade induzem a situações de perigo para as pessoas em seus deslocamentos. No caso da ciclovia sob o Minhocão, por exemplo, implementou-se uma estrutura no canteiro central de forma a não comprometer a circulação motorizada, obrigando os transportes ativos a compartilhar um conturbado canteiro central com pilastras atrapalhando a circulação e a visão entre eles, enquanto os veículos motorizados usufruem do maior espaço da via, sem obstáculos e com altas velocidades. Isso evidencia que, mesmo com o investimento em novas políticas de mobilidade, os modais humanos continuam com menos prioridade em relação aos motorizados.
As travessias da cidade são outras expressões dessa falta de prioridade aos mais vulneráveis no trânsito. A implementação das faixas de pedestres muitas vezes não corresponde à linha de desejo e às necessidades dos fluxos a pé, como ocorre em diversos acessos aos pontos de ônibus na Avenida 23 de Maio, onde as faixas são inexistentes e obrigam as pessoas a cruzarem no meio da via. Mesmo travessias que parecem bem resolvidas, com faixas e sinais luminosos para pedestres, muitas vezes não contam com tempo semafórico suficiente para garantir a travessia completa, e muitas tampouco contam com rampa de acesso. No caso do sr. Florisbaldo, ele fez o que todos os pedestres fazem: atravessou pelo caminho mais curto e lógico, pois a faixa de travessia necessária ali, junto com redutores de velocidade, nunca foi implantada.
Além disso, a população em geral parece ter pouco conhecimento da obrigação do “maior cuidar do menor”, determinada pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB, art. 29, item XII, § 2). Diariamente, é possível testemunhar pedestres sendo obrigados a esperar cessar o fluxo de veículos para conseguir atravessar vias sem semáforo, mesmo tendo prioridade em relação aos demais modais de transporte, situação recorrente em todos os bairros da cidade.
O caso da Avenida Bento Guelfi demonstra que o histórico de negligência em relação aos modos ativos - e mais frágeis - criou uma cultura de não respeito às pessoas e à legislação, que deve ser revertida. Mesmo com a implantação da ciclovia, redução da velocidade na via e implantação de redutores de velocidade, os desrespeitos à sinalização e às pessoas continuam ocorrendo, e a via continua perigosa. Fiscalização intensiva e ações educativas precisam acompanhar as políticas de infraestrutura para evitar mais mortes.
Nós da Cidadeapé – Associação pela Mobilidade a Pé em São Paulo – somos favoráveis ao compartilhamento dos espaços, observando sempre a regra de que “o maior deve zelar pela segurança do menor”. Prezamos uma cidade com menos pressa, onde os encontros e a integração nos caminhos sejam valorizados e existam espaços de convivência. Entretanto, para que isso seja possível, é urgente que as estruturas da cidade sejam alteradas, de modo a privilegiar a segurança dos mais vulneráveis, e não a fluidez motorizada. Necessita-se, ainda, que todas as pessoas estejam engajadas em um compromisso de respeito mútuo.
Baseados nos preceitos da Visão Zero - em que nenhuma morte ou ferimento grave nos deslocamentos sejam aceitos, inclusive quedas nas calçadas - exigimos mudanças estruturais de verdade nas políticas de readequação da cidade e que a vida e as pessoas estejam sempre em primeiro lugar. Todos temos que atuar juntos e evitar que semanas como essa se repitam, e cCabe às autoridades priorizar efetivamente as necessidades da mobilidade a pé para redesenhar as estruturas da cidade, uma vez que todos somos pedestres.
Assina: Cidadeapé - Associação pela Mobilidade a Pé em São Paulo, 20 de agosto de 2015"
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