Mobilidade, bicicleta e desigualdade social

Leia artigo reproduzido do blog de Daniel Guth (Ciclocidade) no site da FSP em que discute a falência da mobilidade urbana como sintoma da desigualdade social

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Fonte: Blog Folha - A Bicicleta na Cidade  |  Autor: Daniel Guth  |  Postado em: 13 de julho de 2015

Atual modelo de mobilidade urbana e a desigualdade

Desigualdade social e falência da mobilidade urbana

créditos: João Gunal

 

A profunda desigualdade social ainda muito presente pode ser observada em diversas dimensões da vida em sociedade. Do mapa da fome à falta de moradia digna; da ausência de saneamento básico para alguns à qualidade do ensino público; da concentração de renda nas mãos de poucos à violência policial nos PPP’s (pretos, pobres, periferia). A falência do modelo atual de mobilidade urbana, por sua vez, é também um importante sintoma da desigualdade social. E é sobre estes aspectos que me debruçarei neste artigo.

 

Desigualdade social #1: a oferta de transporte público

Segundo a pesquisa domiciliar Origem/Destino, realizada pelo Metrô a cada 10 anos na Região Metropolitana de São Paulo, quanto menor a renda familiar, maior o uso que se faz do transporte público. E quanto maior a renda, maior o uso de automóveis (veja gráfico abaixo).

 

Fonte: Pesquisa Origem-Destino (Metrô, 2012)

Uso de transporte individual e coletivo por renda familiar (fonte: Pesquisa de Mobilidade Urbana/ Metrô, 2012)

 

Este por si só já seria um dado alarmante. Mas se cruzarmos o mapa de oferta de transporte público com o mapa de renda familiar, observaremos que os paulistanos mais dependentes do transporte público, ou seja, aqueles com renda mais baixa, moram em regiões com pior oferta de transporte público. E aqueles que não dependem do transporte público, pois optaram pelo transporte individual motorizado, moram em regiões onde há melhor oferta de transporte público.

 

Desigualdade social #2: o tempo nos deslocamentos

Além da baixa oferta de transporte público coletivo àqueles que mais dependem dele, o tempo de deslocamento é um importante fator causador de estresse e sofrimento na população paulistana. Segundo a Pesquisa de Mobilidade Urbana, realizada anualmente pelo Ibope/Rede Nossa São Paulo, o paulistano fica parado no trânsito, em média, 2h46m todos os dias.

 

O mapa abaixo, produzido pelo aplicativo Moovit em toda a cidade, mostra o mapa de calor segundo o tempo de deslocamento dos paulistanos.  Ele evidencia, mais uma vez, que as distâncias nesta correlação moradia-trabalho, bem como a precariedade da oferta de transporte público coletivo eficiente, representam mais um fator de injustiça e desigualdade social em nossa cidade.

 

Fonte: Moovit

Fonte: Moovit

 

Desigualdade social #3: os bairros-dormitório e a concentração de renda e trabalho

Pela característica excludente do crescimento da cidade, que fez com que boa parte da população se adensasse em bairros-dormitório, distantes de serviços básicos e essenciais para a vida cotidiana, os sistemas de transporte – especialmente os de alta capacidade, não acompanharam este crescimento na mesma velocidade. 

 

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A longo prazo o Plano Diretor Estratégico de São Paulo visa corrigir ou minimizar estas injustiças, aproximando moradia do trabalho e buscando criar novas centralidades, de maneira que as ofertas de emprego se aproximem da moradia. Mas ainda assim a característica das políticas habitacionais, especialmente nas décadas de 60 e 70, continham no seu DNA um higienismo e uma perniciosa tendência de apartheid social que ainda levará muitas décadas para se corrigir.

 

Apenas como efeito ilustrativo, todos os dias saem da zona leste de São Paulo mais de 3 milhões de pessoas – quase a população inteira do Uruguai; para trabalhar na região centro-sul, que concentra a maioria dos postos de trabalho da cidade. Estas características, associadas à lentidão e à falta de vontade política, bem como a uma resistência da sociedade em se promover maior diversidade do uso e ocupação do solo – especialmente nas zonas mais ricas da cidade – continua subjugando a população ao em apartheid social e impedindo seu pleno direito à cidade. E a mobilidade urbana sofre e agoniza junto com a população.

 

Desigualdade social #4: a bicicleta como solução

Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (IBGE), realizada entre os anos 2008 e 2009, quase 40% dos brasileiros que adquiriram uma bicicleta para utilizar como meio de transporte tinham renda familiar de até R$ 1.200. Na média, de todos os brasileiros que compraram uma bicicleta, suas rendas eram quase 12% inferior à renda média dos brasileiros. 

 

Ou seja, quem compra e se utiliza da bicicleta como meio de transporte, seja no cenário urbano ou rural brasileiros, são aqueles/aquelas que mais necessitam deste veículo para seus deslocamentos. Seja como economia do vale transporte, seja como instrumento de trabalho, a bicicleta ainda é um dos principais modos de transporte inclusivo e justo socialmente.

 

Aludindo contemporaneamente aos conceitos de Henri Lefebvre, uma cidade orientada para ciclistas e pedestres é uma cidade que garante aos seus habitantes o pleno direito à cidade. Devolver a escala humana, tanto para a orientação urbanística do crescimento da cidade, quanto para a mobilidade urbana, deveria ser uma perseguição intransigente do poder público. Uma cidade onde as distâncias, a vida funcional e os serviços essenciais podem ser alcançados em algumas pernadas – a sapato, bicicleta, skate, etc – é uma cidade que pode se orgulhar de ver boa parte do sofrimento e da exclusão social de seus habitantes reduzidos drasticamente.

 

As bicicletas e a estrutura cicloviária pensada para elas trazem consigo esta quebra de paradigma e suscitam o ódio daqueles que não querem ver a cidade diminuir seu em apartheid social a partir do direito à cidade e de uma mobilidade urbana não orientada pela exclusão.

 

Mais bicicletas, menos apartheid! Mais bicicletas, menos sofrimento!

 

Desigualdade social #5: ciclovias na periferia

Ganha corpo, em São Paulo, o movimentoem #CicloviaNaPeriferia. Com a consolidação de uma rede de ciclovias e ciclofaixas na região centro-oeste, a decisão política por se iniciar a rede a partir da área mais central da cidade acabou evidenciando uma fragilidade de praticamente todas as políticas concernentes à mobilidade: a inclusão dos bairros para além das pontes e viadutos.

 

Foto: Roberson Miguel (CicloZN) Foto: Roberson Miguel (CicloZN)

 

Historicamente é nos bairros mais distantes do centro onde o uso de bicicletas se dá com maior intensidade. Podemos destacar, ainda a partir da Pesquisa Origem-Destino, os bairros do Grajaú (extremo da Zona Sul), Jardim Helena (extremo da Zona Leste) e Vila Maria/Vila Guilherme (Zona Norte) como os três distritos com maior número de viagens feitas em bicicletas.

 

Segundo a apuração da Folha, com base nos dados da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), as Subprefeituras que mais receberam ciclovias do programa de 400 km da gestão Fernando Haddad, até o momento, foram a do Butantã (40,2 km), da Sé (33,8 km) e da Lapa (19,7 km).

 

Evidentemente que um sistema cicloviário só é funcional para o cotidiano de quem usa bicicleta se ele constituir uma rede completa, que considere as importantes centralidades na cidade e nos bairros, que promova integração entre os diversos modais de transporte e que garanta segurança e conforto especialmente nas vias arteriais, tradicionalmente as vias mais perigosas para quem pedala e caminha por elas.

 

No entanto, foi necessário colocar estrategicamente este tema como discussão central da mobilidade urbana na cidade, visando especialmente romper com alguns paradigmas e resistências de setores conservadores da sociedade, que sentiram o golpe narcísico de ver alguns de seus privilégios elitistas serem engolidos pela tinta vermelha que passou a colorir e democratizar um pouco mais o espaço viário da cidade.

 

É inegável, portanto, o poder de reverberação das políticas públicas quando aplicadas no centro. Bem como, para se constituir uma rede cicloviária, é necessário iniciar por algum lugar. Porém, não garantir uma rede completa de infraestruturas para ciclistas que circulam para além das pontes e viadutos, é ainda um reforço que mantém acesa a chama da desigualdade e do "apartheid social".

 

Será necessário debater e consensuar, inclusive, sobre quais modelos de implantação devem ser priorizados nos 40% restantes a serem implantados do plano dos 400 km de ciclovias. 

 

Serão priorizadas bacias cicloviárias em bairros específicos, que integrem os modos ativos de transporte com estações de trem, metrô e terminais de ônibus, a exemplo do que foi feito no Jardim Helena? Ou serão priorizadas ciclovias em grandes corredores arteriais, que possam interligar as áreas mais periféricas com o centro de São Paulo, segundo uma lógica mais expressa, mais direta, como é a eternamente inacabada ciclovia da Radial Leste ou a recém entregue ciclovia da Av. Eliseu de Almeida?

 

Estas questões ainda não foram amplamente debatidas, tampouco incorporadas nos instrumentos legais que garantirão que estas políticas cicloviárias perpassem esta gestão e possam ser continuadas e ampliadas pelas gestões vindouras.

 

#CicloviaNaPeriferia, muito mais do que uma pauta legítima, é um tema urgente e necessário. É a garantia do direito constitucional de ir e vir em segurança; em qualquer canto, em qualquer periferia desta cidade.

 

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