Desde que foi anunciada a implementação dos 400 km de vias cicláveis na cidade de São Paulo pela prefeitura municipal, por meio da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), muito se falou, a favor e contra o processo de democratização do transporte não motorizado sobre duas rodas. Na grande imprensa, disseminou-se a ideia de que o processo é conduzido de forma autoritária, sem planejamento, com falhas de execução. Por outro lado, a mídia especializada vem defendendo a infraestrutura como forma de remediar anos de negligência do poder público para com os usuários da bicicleta.
Para ajudar a esclarecer dúvidas e críticas veiculadas na imprensa e reproduzidas por seus leitores, relacionei a seguir pontos e contrapontos sobre o assunto:
Custo de implementação
Recentemente, a revista Veja São Paulo publicou matéria de capa questionando o custo do quilômetro das novas ciclovias e ciclofaixas (“Projeto de expansão das ciclovias custa mais que o triplo do previsto”), que foi imediatamente rebatido pela prefeitura municipal, por veículos especializados e alternativos como você pode conferir nos links:
Nota de esclarecimento sobre as ciclovias de São Paulo (Prefeitura de São Paulo)
Sobre a matéria da Veja São Paulo e o custo das ciclovias na cidade (Vá de Bike)
Corrigindo os cálculos da Revista Veja (Diário da Mobilidade)
Mesmo assim, quando um veículo do alcance da Veja publica uma matéria de capa, a notícia reverbera, provocando uma reação bastante previsível em parte de seus leitores, contra os investimentos em ciclomobilidade. Os números apresentados pela reportagem, no entanto, são questionáveis. A reportagem somou o custo das faixas com valores relativos a outras intervenções viárias como obras de adequação de pontos de ônibus; o soterramento de fios da rede elétrica e de serviços; fibra ótica subterrânea na avenida Paulista, e assim por diante. Um erro conceitual.
Com custo aproximado de R$ 180 mil por quilômetro, cerca de três vezes menor do que aquele alardeado pela Vejinha, as faixas de São Paulo ocupariam a nona posição num ranking de 11 estruturas comparadas por ordem de custo pela revista, e não a primeira, como foi divulgado em tabela que ilustra a matéria. O custo estaria, portanto, dentro de um valor plenamente aceitável para os mesmos padrões praticados pelo mundo.
Ausência de ciclistas
Outro ponto que inflama os críticos à implementação das faixas tem sido o número de usuários do sistema, o que para muitos não justificaria o investimento. Para estes, as faixas estão sempre vazias, o que seria sinônimo de fiasco. Em pesquisa realizada pela Folha de S. Paulo (Mesmo com ciclovia, frequencia de uso de bicicleta cai em SP) e divulgada no último mês, dados apontavam a diminuição do número de ciclistas na capital paulista.
A metodologia utilizada baseou-se num questionário aplicado a mil pessoas, perguntando se elas usavam ou não a bicicleta e comparando com questionário semelhante realizado um ano antes. Um critério bastante subjetivo. Por outro lado, quando adotamos uma metodologia mais objetiva, como a análise das contagens de ciclistas realizadas pela Associação de Ciclistas Urbanos da Cidade de São Paulo (Ciclocidade) em grandes avenidas, notamos um aumento de até 53% no número de usuários, comparando 2014 com o ano imediatamente anterior.
Vale dizer ainda que relatos de gestores públicos nas cidades de Paris e Nova York, por exemplo, indicam que há um intervalo de tempo de pelo menos cinco anos desde a implantação de uma rede cicloviária até sua aceitação e utilização plena pela população. O mesmo aconteceu na Holanda na década de 50 e na Inglaterra há um punhado de anos. Ou seja, além do número de usuários estar crescendo, há um potencial ainda maior, que só será atingido com o passar do tempo, quando a cidade já deverá estar preparada. Isso é o que se chama planejamento, que será abordado um pouco mais para frente.
Mas dá para adiantar que, na visita feita por este repórter aos bicicletários instalados em estações de trem e metrô, o mais notável é a ocupação quase total destes equipamentos. O fato levou a administração da estação Butantã do metrô, por exemplo, a encomendar um estudo para a ampliação do espaço, que hoje possui 150 vagas, e está sempre cheio. É comum ver bicicletas estacionadas do lado de fora dos bicicletários, amarradas muitas vezes em postes, dada a grande procura dos ciclistas. O mesmo acontece na estação Pinheiros da CPTM e Faria Lima do metrô, entre outras.
Prejuízo ao comércio
Comerciantes que atuam nas regiões que estão recebendo ciclovias e ciclofaixas temem perder clientes com a instalação do equipamento. Muitos já se organizam e entram com liminares na Justiça tentando impedir a implantação das vias cicláveis. A justificativa é que seus clientes utilizam o carro e, sem a possibilidade de estacionarem na porta do estabelecimento, deixarão de frequentar o local.
O motorista paulistano sabe, no entanto, que quando se locomove de carro dificilmente vai encontrar vaga em frente ao local a que se dirige, e quando o estabelecimento não dispõe de estacionamento próprio, o mais comum é ter que rodar pela região atrás de uma vaga, procurar um estacionamento ou usar o serviço de valet.
Mas a preocupação dos comerciantes não ocorre somente no Brasil. De uns tempos para cá, no mundo todo o assunto tem sido abordado em estudos sobre as consequências das ciclovias para o comércio local. Caso notório é o da cidade de Nova York, onde a maioria das vias de Manhattan ganharam ciclovias e que registrou um aumento médio de 3% nos negócios. Sem falar em pontos como a Nona Avenida, que registraram aumento de 49%, e a avenida Vanderbilt, de 103%.
Quem trabalha no comércio sabe da importância destes números, mas, por que será que quando há ciclovias, o volume de negócios aumenta? Pesquisadores da Portland State University explicam que quem vai de carro consome mais em cada visita, porém visita o estabelecimento menos vezes. Os resultados da pesquisa apontaram que o usuário do automóvel visita o mercado em média 9,9 vezes por mês, contra 14,5 vezes do ciclista. Como o valor gasto pelo usuário do automóvel é apenas um pouco superior ao do ciclista, na média, quem pedala gasta mais.
Em São Paulo, alguns comerciantes já estão se preparando para atender a essa crescente demanda: instalaram paraciclos diante dos estabelecimentos e até oferecem descontos para quem vai de bicicleta. Diferentemente do que se pode imaginar, eles não estão dando ‘um tiro no escuro’.
Falta de planejamento
Chegamos por fim ao ponto mais polêmico da discussão: a questão do planejamento. O ‘nariz de cera’ de todos os textos críticos da implementação das novas faixas exclusivas começa assim: “Não somos contra a implementação de ciclovias, mas....”, e lá vem a crítica à suposta falta de planejamento: “A via liga nada a coisa nenhuma”; “a via é esburacada e perigosa”, e assim por diante. Este pode parecer um mito difícil de derrubar, mas não é. As ciclovias e ciclofaixas de São Paulo vêm sendo debatidas e planejadas desde a década de 1980, sem no entanto terem sido cuidadosamente apreciadas por nenhuma gestão de governo, pelo menos não até agora.
Na rua ou na calçada?
É comum em cidades da Alemanha e da Holanda que as ciclovias passem, ora pela pista, ora pela calçada, situação onde muitas vezes são compartilhadas com pedestres. Isso faz parte da dinâmica de cada lugar e ajuda a estimular uma convivência pacífica entre modais.
Em Nova York, por exemplo, boa parte das vias para bicicletas foram implementadas subtraindo faixas de circulação de automóveis. Na maior cidade americana, as vagas de estacionamento são escassas, tanto no viário quanto no interior dos imóveis, o que não acontece em São Paulo. Na capital paulista optou-se por retirar vagas de estacionamento, e não as faixas de rolamento, uma vez que a maioria dos imóveis tem garagens e a retirada de uma faixa dos autos seria muito mais impactante. Isso foi planejado.
Ciclovia ou ciclofaixa?
Embora ciclovias totalmente segregadas sejam equipamentos mais seguros do que ciclofaixas, a construção da primeira envolve custo maior e demora mais para implantar do que a segunda. Em países como Holanda e Bélgica, ciclovias são colocadas apenas em vias rápidas – as vias de trânsito lento são compartilhadas e sinalizadas muitas vezes apenas com faixas ou desenhos de bicicletas. Em São Paulo, as ciclofaixas vieram acompanhadas da diminuição do limite de velocidade no leito carroçável, uma medida acertada. É evidente que se o motorista não respeitar o limite, a via pode se tornar perigosa, inclusive para os pedestres, mas seria um erro atribuir este risco à faixa para bicicletas, evidentemente.
Nada a coisa nenhuma
Antes do programa da prefeitura, a cidade de São Paulo tinha apenas 63 km de ciclovias. Dos 400 km prometidos até o final de 2015, cerca de 200 km já foram entregues, faltando ainda mais 200 km até o final do ano. Embora ainda falte metade do que foi prometido, ao acessar o mapa digital da CET, que é atualizado com cada novo trecho inaugurado, é possível perceber que as vias já cobrem boa parte do centro da cidade, se estendem pela zona oeste, chegam em parte da zona sul e já têm muitas ramificações nas zonas leste e norte. Mas como será que elas se conectam?
Para tirar a prova, decidimos pedalar do extremo oeste da cidade, na divisa com o município de Osasco, até o extremo leste, no Parque Ecológico do Tietê, na divisa com Guarulhos, buscando utilizar apenas ciclovias e ciclofaixas. Se for possível uma ligação leste-oeste, então ficará difícil sustentar a ideia de que as vias cicláveis ligam nada a coisa nenhuma. O resultado está no vídeo abaixo; assista que você pode se surpreender.
Vídeo de Du Dias pedalando pelas faixas de bicicleta, de oeste a leste da cidade de SP
Então as ciclovias e ciclofaixas paulistanas são perfeitas - as melhores do mundo?
Não, elas não são. As ciclovias e ciclofaixas recém-implementadas têm uma série de problemas, que são inclusive bastante óbvios para estruturas que utilizam parte do viário já existente numa cidade como São Paulo, extremamente castigada pelo tráfego pesado de automóveis. Irregularidades no piso e buracos são comuns, mas raramente impeditivos. Por vezes as ciclofaixas não têm conexão e carecem de sinalização adequada, prática que poderia facilitar muito a vida de quem pedala, e atrair ainda mais ciclistas.
Apesar das falhas, a implementação dos 400 km de ciclovias é uma grande conquista, não só para aqueles que utilizam a bicicleta como meio de transporte, mas para o conjunto da sociedade que aos poucos deve ocupar o espaço público de maneira cada vez mais plena e saudável. E, se elas apresentam problemas agora, devemos tratar de melhorá-las ao invés de tentar extinguir um sistema de transporte que se anuncia como parte da solução de mobilidade humana em todo o mundo.
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