Como os pedestres foram expulsos das ruas*

Há mais de cem anos, a indústria do carro iniciou uma campanha para criminalizar as pessoas que atravessavam fora da faixa. E assim, liberar as vias para o tráfego

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Fonte: Vox  |  Autor: Joseph Stromberg. Tradução: Rafael Darrouy*  |  Postado em: 20 de agosto de 2024

Pessoas a pé são a maioria das vítimas da violênci

Pessoas a pé são a maioria das vítimas no trânsito

créditos: Fernando Moraes/Equipe de arte Veja SP

 

Muitos podem não saber, mas a indústria automobilística atua nos bastidores do poder e da mídia para impor costumes e leis que beneficiam seu produto. Foi assim que ela acabou com os bondes elétricos que faziam o transporte público de diversas cidades ao comprar as empresas e sucatea-las, introduzindo os ônibus barulhentos, desconfortáveis e poluidores. Tudo para vender automóveis aos, outrora, felizes passageiros do transporte público.

 

Também, foi assim que as ruas passaram a ser de uso exclusivo dos veículos motorizados, expulsando os pedestres, as crianças e o comércio para as calçadas. O texto abaixo, publicado originalmente no portal estadunidense Vox e traduzido por Rafael Darrouy*, explica bem como, na década de 1920, os pedestres foram proibidos de atravessar as ruas.

 

Como a indústria automobilística criminalizou os pedestres que atravessam fora da faixa

Em 1910, se você fosse um pedestre, atravessar a rua era simples: bastava cruzá-la em qualquer ponto. Hoje, se há tráfego na área e você pretende seguir a lei, é necessário encontrar uma faixa de pedestres. E se há um semáforo, você precisa esperar que ele feche para os automóveis. Deixe de fazê-lo, e você estará cometendo uma infração de trânsito. Em algumas cidades – Los Angeles, por exemplo – dezenas de milhares de multas são aplicadas a pedestres que atravessam fora da faixa.


Para a maioria das pessoas, isso parece parte da natureza básica das ruas. Mas na verdade é o resultado de uma agressiva campanha liderada pela indústria automobilística que redefiniu os donos das ruas das cidades nos anos 1920. “Nos primeiros dias do automóvel, era trabalho dos motoristas evitar os pedestres, e não o contrário”, diz Peter Norton, historiador da Universidade de Virginia e autor de Fighting Traffic: The Dawn of the Motor Age in the American City. “Mas sob o novo modelo, as ruas se tornaram um lugar para carros – e como um pedestre, a culpa é sua, caso seja atropelado”.

 

Uma das chaves para essa mudança foi a criação do crime de “jaywalking” (atravessar a rua fora da faixa). Aqui está uma história de como isso aconteceu.

 

Ruas sendo utilizadas por todosHester Street em Manhattan, Nova York, cerca de 1914. Foto: Maurice Branger/Roger Viollet/Getty Images

 

É difícil de imaginar, mas antes da década de 1920, as ruas das cidades eram muito diferentes do que são hoje. Elas eram consideradas espaços públicos: um lugar para os pedestres, vendedores de carrocinha, veículos puxados por cavalos, bondes e crianças a brincar.

 

“Os pedestres andavam nas ruas em qualquer lugar que quisessem, quando quisessem, geralmente sem olhar”, diz Norton. Durante a década de 1910, havia poucas faixas de pedestres pintadas na rua, e elas geralmente eram ignoradas. Quando os carros começaram a se espalhar amplamente durante os anos 1920, a consequência disso era previsível: a morte. Durante as primeiras décadas do século, o número de pessoas mortas por carros disparou. 

 

Aumento do número de óbitos causados por automóveis nos Estados UnidosCrescimento das mortes de pedestres em sinistros de trânsito (1901-1923). Fonte: Peter Norton


Os mortos eram, principalmente, os pedestres – não motoristas – e majoritariamente idosos e crianças, que antes tinham as ruas livres para passear e brincar. A resposta do público a essas mortes foi, é claro, negativa. Veículos eram muitas vezes vistos como brinquedos, semelhante à maneira como pensamos em iates hoje (muitas vezes eles foram chamados de “carros de prazer”). E nas ruas, eles foram considerados intrusos violentos.

 

Cidades ergueram monumentos para as crianças mortas em acidentes de trânsito e jornais cobriram as mortes no trânsito em detalhes, geralmente culpando os motoristas. Cartunistas demonizavam os carros, muitas vezes associando-os com “a morte”.

 

Charge no jornal, carro passando por cima de tudo
Matéria de capa do The New York Times em 1924: automóvel como "máquina da morte". Imagem: Reprodução

 

Antes das leis formais de tráfego serem colocadas em prática, os juízes normalmente decidiam que em qualquer colisão, o veículo maior – ou seja, o carro – era o culpado. Motoristas foram acusados de homicídio culposo, independentemente das circunstâncias do acidente.

 

Automóveis dominando as ruas da cidade
Na mesma Manhattan, por volta de 1925, com o aumento do tráfego motorizado, os pedestres arriscavam-se entre os carros. Foto: Edwin Levick/Getty Images

 

Com o elevado número de mortes, ativistas anticarro se mobilizaram para diminuir a velocidade dos automóveis. Em 1920, a Illustrated World publicou: “todos os carros deveriam ser equipados com um dispositivo que limitaria a velocidade de acordo com as regras da cidade onde o proprietário vive” [que hoje seria facilmente realizável, com as redes e a inteligência embarcada nos veículos motorizados].

 

A virada veio em 1923, diz Norton, quando 42 moradores de Cincinnati assinaram uma petição que exigia que todos os carros tivessem um dispositivo que limitasse-os a 25 km por hora. As concessionárias locais ficaram aterrorizadas e entraram em ação, enviaram cartas para cada proprietário de carro na cidade para que votassem contra a medida, e também alertando grupos automobilísticos por todo o país para o risco de diminuição do potencial de vendas de automóveis. 

 

Vote não!
Cincinnati, 1923: Vote Não!, dizia a campanha da indústria do carro para defender seus interesses. Imagem: Cincinnati Post

 

Em resposta, as montadoras, distribuidores e grupos de entusiastas trabalharam para redefinir legalmente a rua – para que os pedestres, em vez dos carros, tivessem a circulação restringida.


A ideia de que os pedestres não deveriam ser autorizados a caminhar por onde quisessem já havia sido pensada em 1912, quando a cidade de Kansas publicou a primeira portaria obrigando-os a atravessar ruas na faixa de pedestres. Mas foi em meados dos anos vinte que a indústria automobilística assumiu a campanha com vigor, conseguindo a aprovação das mesmas leis por outras cidades do país.


As montadoras assumiram o controle de uma série de reuniões convocadas por Herbert Hoover (então secretário de Comércio) para criar uma lei de trânsito modelo que poderia ser usada por várias cidades do país. Devido à sua influência, o produto dessas reuniões, o Model Municipal Traffic Ordinance, de 1928 – foi amplamente baseado nas leis de trânsito de Los Angeles, que havia decretado rígidos controles para pedestres em 1925.

 

“O mais importante sobre este Modelo, foi afirmar que os pedestres deveriam atravessar as ruas apenas em faixas de pedestres, e sempre em ângulos retos”, diz Norton. “Essencialmente, esta é a lei de trânsito que vigora até hoje.”

 




Campanhas de segurança ridicularizavam o "jaywalking" nos anos 1920/30. Imagem: National Safety Council/Library of Congress

 

Mesmo após a aprovação dessas leis, os grupos da indústria automobilística ainda enfrentavam um problema: na cidade de Kansas e em outros lugares, ninguém estava seguindo as regras. As leis raramente eram aplicadas pela polícia ou juízes. Para resolver esta questão, a indústria assumiu várias estratégias.

 

Uma delas foi a tentativa de moldar a cobertura de notícias de acidentes de carro. A Câmara Nacional de Comércio de Automóvel, um grupo da indústria, criou uma agência de notícias livre dos jornais: repórteres poderiam enviar os detalhes básicos de um acidente de trânsito, e obteriam em troca um artigo completo para imprimir no dia seguinte. Estes artigos, impressos amplamente, colocavam a culpa pelos acidentes nos pedestres – sinalizando que seguir as novas leis era importante.

 

Da mesma forma, a Associação Americana de Automóveis (AAA) começou a patrocinar campanhas de segurança escolar e concursos de cartazes, criados em torno da importância de ficar fora das ruas. Algumas das campanhas também ridicularizavam crianças que não seguiam as regras.

 

Em 1925, por exemplo, centenas de crianças em idade escolar de Detroit assistiram ao “julgamento” de uma criança de doze anos de idade, que tinha atravessado a rua sem segurança, e foi condenada a limpar quadros-negros por uma semana.

 

Não seja um palhaço, atravesse na faixa
Nova York, 1924: Jaywalker, ou "pedestre caipira" representado por um palhaço.
Foto: Coleção da Barron Collier Company, via Peter Norton

 

Os “auto-ativistas” pressionaram a polícia a fazer com que os transgressores fossem ridicularizados através de assobios e gritos – e até mesmo levando as mulheres de volta para a calçada – em vez de calmamente repreender ou multar. Eles realizaram campanhas de segurança no qual atores vestidos com trajes do século 19, ou como palhaços, foram contratados para atravessar a rua de forma ilegal, o que significa que a prática estava ultrapassada e era tola. Em uma campanha realizada em 1924, nas ruas de Nova York, um palhaço marchou na frente de um Modelo T que o atingia repetidamente.

 

Esta estratégia também explica o nome que foi dado para o ato de cruzar ilegalmente a rua a pé: “jaywalking”. Naquela época, a palavra “jay” significava algo como “caipira” – uma pessoa que não sabia como se comportar em uma cidade. Assim, os grupos pró-auto promoveram o uso da palavra “jay walker” como alguém que não sabia como andar em uma cidade, ameaçando a segurança pública.


“A campanha foi extremamente bem sucedida. Ela mudou totalmente a ideia de rua e de seu uso", 
 diz Norton. 


Leia o original
(em inglês) em The forgotten history of how automakers invented the crime of "jaywalking"

(*) Texto originalmente publicado em agosto de 2022 e atualizado em 23/8/024
Rafael Darrouy é entusiasta do ciclismo urbano e editou o blog Ciclista Capixaba. Edição de Yuriê César e reedição de Marcos de Sousa, do Mobilize Brasil.

 

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