O pedestre é totalmente inofensivo com relação ao ar da cidade e consome pouquíssima energia. É estranho, portanto, que – num momento em que tudo precisa ser sustentável, ecológico, orgânico – esse hábito não seja mais estimulado nas nossas maiores cidades. Em São Paulo, por exemplo, andar a pé ainda é considerado um hábito excêntrico ou impossível.
Mas não é: caminhar é a modalidade de transporte mais popular na cidade de São Paulo, na verdade. Ainda assim, ela não deixa de ser também uma aventura. A situação das calçadas de São Paulo é provavelmente a nossa mais absurda calamidade urbana: porque a calçada talvez seja o espaço público mais importante de uma cidade.
Não é à toa que Jane Jacobs, no clássico e maravilhosamente bem escrito Morte e Vida das Grandes Cidades, dedica os três primeiros capítulos a calçadas e a questões da vida urbana que dependem diretamente delas: segurança, contatos e, curiosamente, assimilating children. Para Jane Jacobs, o movimento de pessoas numa calçada não é importante apenas para a segurança da rua ou para estreitar a relação entre os habitantes do mesmo bairro: a calçada – que é também um ambiente para crianças se divertirem sob o olhar de adultos – tem ainda uma função pedagógica, civilizadora.
É muito triste ler Jane Jacobs e andar por São Paulo. Só o fato da obrigação em conservar a calçada ser do proprietário do imóvel lindeiro já é uma aberração: porque o piso perde a regularidade, a manutenção não acontece, o custo é mais alto e a responsabilidade dilui-se entre milhões de proprietários anônimos. Uma das conseqüências desse modelo tropical de manutenção é que o estado das nossas calçadas consegue ser pior do que o das nossas ruas.
Os problemas variam, mas são graves em todos os tipos de bairros paulistanos. Nos mais ricos, arquitetos são incapazes de diferenciar uma área que precisa funcionar – como uma área de pedestre em que as pessoas precisam antes de tudo andar – de um espaço mais, digamos, contemplativo. Na Faria Lima, por exemplo, em frente a um desses prédios que se consideram sustentáveis e inteligentes, uma calçada chega ao cúmulo de ter seu traçado em zigue-zague, obrigando o pedestre quase a rebolar em seu trajeto.
E regiões em transformação estão perdendo a oportunidade de se organizar de maneira mais urbana. Quarteirões inteiros estão sendo fechados para abrigar condomínios-clubes. Um bairro agradável oferece padarias, mercados, lojas de roupas, lavanderias, livrarias, etc., que dão vida à vizinhança. Sem esse pequeno comércio, um bairro se esvazia. E, suburbano, fica menos divertido e mais perigoso. Na Vila Olímpia, o problema com as calçadas se repete, mas em outro sentido: multiplicou-se infinitamente a quantidade de pessoas que freqüentam a região, mas a infra-estrutura continua igual. Os pedestres então se acotovelam nas calçadas, onde disputam espaço com carrinhos de cachorro quente, ou são obrigados a andar no meio da rua.
É verdade que existem projetos pontuais na direção oposta, em geral de iniciativa privada. O Branscan Century Plaza, no Itaim, abriu uma praça que é praticamente uma extensão do calçamento em seu entorno. O alargamento e a padronização da calçada num trecho da Oscar Freire melhoraram seu aspecto e circulação. No Centro, a família Manccini recuperou um trecho da Rua Avanhandava. Na Vila Madalena, o edifício residencial Simpatia 236 afasta a grade da rua e oferece um banco ao pedestre. É de iniciativas generosas, inteligentes e baratas assim que São Paulo precisa.
Se não me engano, foi Bernard Shaw que disse que, quanto mais altos os muros de uma cidade, menos civilizada ela é. A lógica funciona também com relação à qualidade das calçadas. Daí – independentemente do carro que guiamos, das pontes que atravessamos, da quantidade de helicópteros que sobrevoam São Paulo – é possível estimar o estágio de civilização em que nos encontramos. E, se pretendemos sair dele, portanto, precisamos aprender a andar de pé. Ops, a pé.
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