Os 'excluídos do transporte' no Pará

Populações isoladas de vias e corredores são pouco lembradas na discussão sobre mobilidade urbana. Mas elas ainda contam com algo. a solidariedade mútua

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Fonte: Diário do Pará  |  Autor: Diário do Pará  |  Postado em: 08 de abril de 2014

Bicicletas são muito utilizadas no assentamento Má

Bicicletas são utilizadas no assentamento Mártires de Abril

créditos: viagensdepaulopom.blogspot.com.br/

 

As manifestações de rua em junho de 2013 levantaram para o debate público a questão do preço das tarifas de ônibus e transportes públicos. Acuado pela pressão popular, o governo federal apresentou algumas medidas imediatas para redução, ao mesmo tempo que solicitou ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que realizasse estudo para esclarecer os principais desafios do transporte público.

 

Passados quatro meses, o Ipea apresentou um relatório onde destacava uma categoria até então pouco lembrada nas discussões sobre a mobilidade urbana – os excluídos do transporte. Essa categoria de cidadãos engloba pessoas cujo acesso ao transporte público é muito difícil pela dificuldade em pagar as tarifas e pelo isolamento dos principais corredores e vias, destaca a reportagem a seguir do jornal Diário do Pará.

 

O destaque para a categoria dos excluídos do transporte ajuda a jogar luz para uma realidade bem próxima em nosso estado. “O sistema de trânsito em Belém é muito deficiente. Você paga uma tarifa integral independente da distância que pretenda percorrer, e isso acaba afastando algumas pessoas com menor poder aquisitivo. Além do mais, temos poucos corredores de tráfego e muitas áreas com abrangência pequena de ônibus. A partir de determinada hora você não encontra praticamente ônibus nas ruas”, explica Rafael Cristo, pedagogo e especialista em trânsito.

 

O nó das políticas

Rafael aponta a falta de políticas públicas como um dos principais motivadores desse processo de exclusão do trânsito. “As empresas levam também em consideração a falta de segurança e outros fatores quando determinam seus itinerários e horários, mas pensar num transporte que integre a cidade passa por estímulos e incentivos da gestão pública. Essa falta de políticas gera algumas situações extremas, como é o caso do sistema de trânsito de Marituba”, aponta Rafael.

 

Marituba, cidade com a terceira maior densidade de moradores por km² da Região Metropolitana de Belém, tem seu sistema de transporte comandado por apenas três cooperativas, cujos itinerários, basicamente, fazem trajetos longos entre alguns setores da cidade e o centro de Belém. “Não se vê, praticamente, ônibus integrando Marituba com Ananindeua e Benevides. Isso torna a locomoção truncada. Você precisa pegar muitos ônibus para chegar a locais próximos, o que encarece o processo. Isso se reflete em muitos ônibus transitando pelas mesmas vias, tornando o trânsito lento, além de obrigar os moradores não abrangidos pelo transporte público a investir em transportes privados, como a compra de motos”, explica Rafael, explicando que esse é um fenômeno comum a todas as regiões com exclusão no trânsito.

 

Rafael acredita que uma saída para enfrentar esse problema passa pela substituição do atual sistema por um sistema integrado ou troncal de transporte urbano, além da adoção de medidas tarifárias diferentes, como o bilhete único, que já vigora em outros centros urbanos.

 

“Se trabalhássemos com terminais de integração e redes de ônibus ligando os bairros a esses terminais, reduziríamos o tempo das viagens e a demora no trânsito. Mas esse sistema precisa ser aliado de um sistema integrado de passagem, onde a pessoa pague uma tarifa diferenciada para viagens de menor distância. De toda forma, é fundamental que esse planejamento de trânsito se dê de forma integrada por região. Na Região Metropolitana de Belém, por exemplo, temos cerca de 2,1 milhões de pessoas utilizando o transporte público. Então uma solução para trânsito precisa pensar em todo esse contingente”, diz o especialista.

 

Cooperar é a regra

A ilha de Mosqueiro, situada a 70 km de Belém, por si só já é uma região que apresenta dificuldades na área de transportes. Porém, dentro dos seus limites, há uma comunidade que exemplifica como poucas o sentido da exclusão. Atravessando a BL-13, estrada de areia batida que sai da longa Estrada da Baía do Sol, encontramos o assentamento Mártires de Abril, um agrovila construída por camponeses ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, há aproximadamente 15 anos. Para ter acesso a ônibus e carros que levam ao centro da cidade, é preciso atravessar a estrada: os únicos veículos motorizados que eventualmente atravessam o assentamento são as motos dos moradores. De dentro do acampamento, além das casas humildes, o que se vê são árvores e plantas compondo a paisagem.

 

Embora a descrição possa soar incômoda para muitos dos moradores do assentamento não há queixas das dificuldades. Pelo contrário. Eles encontram nessas condições oportunidades para desafiar essa dinâmica com a arma da cooperação.

 

“O principal meio de transporte no assentamento é a bicicleta, em quase toda casa tem uma. Mas as famílias que têm moto são solidárias. Sempre que veem que há alguém indo na mesma direção, oferecem carona”, explica Antônio Agno, 23, morador do assentamento. Antônio explica que a cultura das caronas chegou aos moradores do entorno do assentamento, que hoje em dia cooperam bastante. “No começo havia muito preconceito, mas temos uma relação de muita troca com os moradores da ilha.Então hoje em dia quando eles veem os moradores andando fora do assentamento já oferecem carona também”, explica Agno.

 

Baseado numa área de casas e outra com lotes rurais de 20 por 30 metros, o assentamento vende sua produção de agricultura familiar geralmente a feiras e comércios da própria ilha de mosqueiro. Com a impossibilidade de acesso a caminhões e ônibus para escoar a produção, moradores costumam adaptar carrocerias às motos para transportar cargas maiores. Eventualmente esses compartimentos acoplados também são utilizados para transportar pessoas, quando a necessidade de transporte coletivo exige. A confiança e a cooperação são um ponto chave para o funcionamento dessa relação. E isso exige um trabalho de vigilância e cooperação entre os próprios moradores.

 

“Atualmente temos 97 famílias e cerca de 500 moradores no assentamento. Originalmente tínhamos 99 famílias, mas algumas pessoas adotaram comportamentos que não condiziam com a proposta do assentamento – furtos, drogas e coisas assim. Por conta disso, após reunião, pedimos a eles que se retirassem do assentamento”, explica Antônio.


Participação popular

Após reuniões e deliberações entre os moradores, o assentamento levou à agência distrital pedidos para mudanças no transporte público. Em 2013, o programa municipal Caminhos para Escola, de transporte escolar, passou a abranger o assentamento. As crianças da comunidade são pegas na parada de ônibus ao final da BL-13, levadas à escola e trazidas de volta para casa.

 

O avanço motivou os moradores a se organizar, elaborar projetos e discutir com a agência distrital mais soluções para o trânsito envolvendo o assentamento. “Entendemos que não há como transitar ônibus dentro do assentamento, mas acreditamos que vans têm condições de circular pela nossa via principal. Temos alguns transportes alternativos que eventualmente fazem essa rota, mas queremos um projeto regulamentado para proteger quem mais sofre com o transporte irregular, que são os idosos e crianças. Muitas vezes esses transportes não aceitam gratuidade e meia entrada, e ao verem que há apenas pessoas assim esperando na parada, eles nem param para pegar os passageiros”, reclama Jonilson Martins, 35, morador do assentamento há 15 anos.

 

Enquanto os projetos são debatidos com o poder público, a vida segue no acampamento. Para as crianças que brincam de bola ao largo da BL-13, enquanto não passa nenhuma bicicleta ou moto, tudo isso faz parte de uma realidade que elas encaram sem reclamar.

 

Quando o jovem Richardson, de 9 anos, é perguntado se sente falta de carros e ônibus a transitarem pelo acampamento, ele não titubeia. “A gente aqui anda de bicicleta. Se alguém precisar ir pro hospital, é só pedir pra quem tem moto que eles levam a gente”, explica sorrindo, espontaneamente o menino.

 

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