O Brasil vem passando por um processo acelerado de urbanização, especialmente desde a década de 1950, quando a perda de importância relativa da agricultura cafeeira e a industrialização crescente passaram a atrair grandes contingentes de trabalhadores agrícolas para as cidades. Em 1950, cerca de 36% dos então 51,9 milhões de brasileiros moravam nas cidades. O Brasil está em transição intensiva. A urbanização avança: hoje, no Brasil, 84% da população vive nas cidades e, em 25 anos, teremos mais de 90% de moradores urbanos.
Esse fenômeno inexorável e que deve se intensificar trouxe consequências trágicas para nossas grandes metrópoles. Temos hoje taxa de urbanização equivalente às dos países europeus e dos Estados Unidos, porém, sem os investimentos em melhorias urbanas e sociais desenvolvidas por essas nações desde o início do século 20, entre eles, no transporte público de massa, especialmente em trens metropolitanos, metrôs, BRTs e VLTs.
Nossas principais metrópoles estão literalmente parando, em meio aos congestionamentos e à falta de transporte público de massa. Além disso, há outras questões relacionadas à mobilidade que exigem atenção urgente, pela sua importância para a garantia do direito constitucional de ir e vir, como a situação das calçadas e da iluminação pública, por exemplo. Viver nas grandes cidades brasileiras transforma-se cada vez mais num tormento cotidiano.
É preciso mudar, repensar os conceitos urbanísticos, de planejamento e de enfoque no tratamento desses problemas. A infraestrutura, aquém da necessária e mal mantida, e a insuficiente oferta de transporte público de alta capacidade e qualidade levam a um impasse e obrigam à mudança no “modo de usar” as cidades. A questão da mobilidade urbana evidentemente está na ordem do dia.
Mas creio que a melhor maneira de repensar as cidades é enxergando-as pelo prisma da Mobilidade Humana. Mais do que uma questão meramente semântica, é uma mudança de enfoque: passa-se a enxergar as pessoas e os cidadãos reais, com suas características e eventuais deficiências, inseridos nas cidades existentes.
Nesse contexto, cresce a importância das calçadas, lugar utilizado pelo cidadão e onde a sua condição de ser humano é, ou deveria ser, valorizada. As calçadas são o lócus onde a dimensão humana encontra o ambiente adequado para a sua plena expansão, para o seu pleno exercício. E as calçadas são os ícones das cidades civilizadas; é nelas que se desfruta o prazer de estar em qualquer cidade do planeta que valoriza o cidadão e é, a partir delas, que se identifica e se capta o caráter e a personalidade que lhe são próprios.
Exemplos não faltam. O ícone de Paris é a torre Eiffel, mas é nas calçadas amplas da Champs Elysées que se sente a cidade-luz. A Estátua da Liberdade é emblema de Nova York, mas quem não passear pelas largas calçadas da 5ª Avenida e pela minúscula Times Square, não terá conhecido a maior cidade norte-americana.
Pois em São Paulo e na maioria das cidades brasileiras não temos calçadas dignas desse nome! Quando existem, são irregulares, esburacadas, armadilhas para pedestres e impossíveis para cadeirantes e para transitar com carrinhos de bebê, por exemplo. Em parte da capital paulista, na periferia, simplesmente não há calçadas. E a ausência de iluminação pública decente nas vias e a má qualidade das calçadas, quando existem, agravam a falta de segurança e são um desrespeito às pessoas e à cidadania.
O poder público se move lentamente, as alterações de Plano Diretor são difíceis de aprovar, dados os conflitos de interesses, e suas normas são de difícil implementação, posteriormente. Mas a sociedade tem vida e dinâmica próprias, é mais ágil na busca de soluções de seus problemas, resolvendo-os por sua conta.
As pessoas que podem procuram simplificar sua vida, alterando seus hábitos, deixando seus carros, reduzindo sua necessidade de deslocamentos. Mas, para que exista de fato mobilidade humana nas grandes cidades brasileiras, é necessário que os planejadores, gestores, administradores públicos, vereadores e a sociedade civil organizada comecem a pensar novas formas de usar e de cuidar das nossas urbes.
A obrigatoriedade da manutenção das calçadas pelo poder público municipal é uma delas, pois obriga as prefeituras a cuidarem melhor dessas vias. Essa medida eliminaria a atual situação, pela qual os proprietários são responsáveis pela manutenção das calçadas, gerando os problemas atuais e a cacofonia e poluição visual dominantes em nossas cidades. A atribuição da responsabilidade pela execução e manutenção das calçadas ao poder público permitiria a sua padronização, com a adoção de projetos paisagísticos, desenhos e sistemas construtivos desenvolvidos por profissionais (arquitetos, engenheiros, arquitetos-paisagistas), após discussão com a sociedade civil nos fóruns adequados e democráticos.
De certa forma, este pode ser o sentido dos versos do grande poeta espanhol Antonio Machado: “Caminante, no hay camino; El camino se hace al andar” (“Caminhante, não há caminho. O caminho se faz ao andar”). A mobilidade humana, esse conceito novo para uma antiga questão, precisa ser aprendida, ao longo do caminho. Números, dados e estatísticas têm a sua importância, mas o fundamental é a mudança de ótica – da relativamente abstrata mobilidade urbana para a necessária e real mobilidade humana. E, principalmente, conquistar a mobilidade humana exige a mobilização e a participação de todos, na legítima e democrática reivindicação dos seus direitos básicos e constitucionais de ir e vir, com segurança, em todos os sentidos. Mobilizemo-nos, então.
*José Roberto Bernasconi é presidente do Sinaenco - Sindicato da Arquitetura e da Engenharia
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