"Fomos subindo, galgando vagarosamente aquelas escadinhas, parando aqui e ali, para descansar". O relato do cronista Francisco Guimarães, o "Vagalume", narra o dia em que ele subiu as ladeiras íngremes, os becos e vielas do Morro da Providência, na zona portuária do Rio de Janeiro, em 1933, quando a comunidade ainda se chamava "Morro da Favela". Depois de pouco mais de 80 anos, um inovador meio de transporte foi construído com a promessa de alívio para as pernas de mais de 7.000 moradores, além de visitantes e turistas. No entanto, passados nove meses da conclusão das obras, o teleférico da Providência não saiu do lugar.
O Rio de ontem
"De 1922 para cá, quando o dr. Carlos Sampaio, então prefeito, entendeu devastá-la, a favela foi entregando os pontos. Com mais outra investida, desaparecerá. (...) O embelezamento do morro se impõe diante do progresso e da grande evolução da cidade nestes últimos anos"
No livro "Na roda do samba", o cronista carioca Francisco Guimarães, o "Vagalume", criticou a política de "embelezamento" do Morro da Providência. O texto foi escrito depois de ele circular pela favela na companhia do sambista Dodô, em 1933
Para erguer a estação no alto do morro, o governo municipal destruiu a praça Américo Brum, que era a única opção de esporte e lazer para a maioria dos moradores. O sistema possui ainda outras duas estações planas, sendo uma na Central do Brasil --próximo ao metrô e aos trens da Supervia-- e uma ao lado da Cidade do Samba, complexo que reúne os barracões de todas as escolas de samba que desfilam na elite do Carnaval carioca.
O teleférico foi chamado, em 2012, de "Pão de Açúcar 2" pelo prefeito Eduardo Paes (PMDB). O investimento foi de R$ 75 milhões. "Encheu os olhos do povo. É como colocar bala na boca de criança. E, até agora, eu não vi nada", disse o estivador Izael Avelar. "A estação está largada com lixo aí acumulando. Ainda não vi nenhuma autoridade chegar aqui para dizer quando vai funcionar."
A Secretaria Municipal de Habitação informou, em nota, que está "finalizando o modelo de operação para que ele entre em funcionamento". Ainda de acordo com o órgão, Doppelmayr,, responsável pela implantação do teleférico, realiza vistorias frequentes e não houve dano ao equipamento --a última foi realizada entre 17 e 19 de janeiro. "Todo o equipamento será revisado antes de entrar em funcionamento".
Os moradores, no entanto, observam sinais de ferrugem nas gôndolas. "Se você olhar direitinho, está tudo se corroendo [em referência aos equipamentos da estação]. A ferrugem já está comendo parte da estrutura. Quando for usar, vai ter que ter um outro gasto para fazer a manutenção", continuou o morador. "É dinheiro público gasto de forma desnecessária."
"Não fizeram? Agora a gente quer ver funcionar. Ficou um negócio, assim, sem graça", opinou o comerciante José Gomes, 63, que tem uma loja de materiais de construção a poucos metros da estação do alto do morro. "Fizeram a gente de bobo. (...) Gastaram milhões e milhões, e fizeram a gente de bobo. Fizeram o negócio e largaram aí um elefante desses. De elefante branco, no Brasil, a gente já tem muito. Será que esse é mais um elefante branco? Serve pra que? Só isso? Parou? Acabou?"
Moradores preferem praça
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A praça Américo Brum (foto) deixou de existir para dar lugar à estação do teleférico, no alto do morro. Em 2011, os moradores protestaram contra a interdição do local (foto). Eles argumentam que a praça era o único espaço de esporte e lazer para as crianças da comunidade. "Cadê a área de lazer das crianças, que era o mais importante?", questionou o morador Rogério Oliveira da Conceição
Prejuízo social
"Quando eu cheguei aqui só tinha essa praça. Não tinha nada disso. Aqui era o divertimento das crianças. Tinha onde brincar e jogar bola. Mas agora, lá em cima, não tem mais onde as crianças se divertir. Não tem um lazer, não tem nada."
Cristina Silva dos Santos, 67, moradora da favela da Providência há 44 anos
Para o aposentado Ivaldo Miranda, 78, a situação é ainda mais complicada. O idoso tem graves problemas de saúde, como diabetes e má circulação, o que lhe dificulta a locomoção, além de morar "praticamente sozinho" na comunidade. Para subir e descer a Providência, ele diz depender das kombis que circulam pela favela e suprem a carência de um serviço mais eficiente de transporte público. Os moradores pagam R$ 2,50 para subir e R$ 1 para descer.
"As kombis até que funcionam, mas já que tem uma melhora [referindo-se ao teleférico], que se faça uma melhora completa. As kombis ficariam apenas para ajudar", relatou Miranda, que vive na favela há 40 anos e se sustenta com uma aposentadoria no valor de R$ 721. "No sábado e no domingo, há uma grande dificuldade. São menos kombis. Se você sai muito cedo, tem que esperar até 10h. Às 8h, 9h, não tem kombi."
Transtorno
"Além de ele estar muito pesado [referindo-se ao filho Miguel, de cinco meses], eu tenho muita dor na coluna. Quando não tem a kombi, a gente tem que subir a pé. Às vezes, a gente chega lá em baixo, principalmente por volta das 16h, e encontra uma fila enorme, virando a esquina. Daí temos que esperar para subir."
Shirley da Silva Santos, 21, moradora da favela da Providência
A moradora Maria da Conceição Gomes Câmara, 79, residente na Providência há 50 anos, diz que a favela melhorou muito em meio século, porém ressalta que o transporte público continua sendo o principal problema enfrentado pela comunidade. "São 50 anos subindo e descendo. Estou muito cansada. Sinto uma falta de ar terrível, desço e subo com falta de ar", declarou ela, que foi vítima de um aneurisma há cinco anos.
"Quando a gente chegou aqui, não havia água e luz. Agora a gente já tem. Temos até esse teleférico, mas ele tem que funcionar. Se eles começaram a obra, que eles terminem. Seria muito bom para os moradores", completou Maria da Conceição, que disse não poder realizar atividades físicas regularmente em função do não funcionamento do teleférico. "Eu poderia ir na Vila Olímpica [da Gamboa], mas acabo ficando por fora das atividades para idosos", reclamou.
Primeira favela do Rio
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Fundada em novembro de 1897 por soldados que haviam acabado de chegar da guerra de Canudos, a Providência é considerada a primeira favela do Rio de Janeiro. Inicialmente, o terreno foi chamado de "Morro da Favela", termo que se popularizaria posteriormente e passaria a designar as comunidades da capital fluminense. Os dois nomes, "Providência" e "Favela", surgiram da experiência dos militares na batalha contra os jagunços liderados por Antônio Conselheiro. "Favela" é o nome de um arbusto grande, cujas folhas provocam urticária, comum em regiões do sertão baiano. Já "Providência" seria referência ao rio em Canudos do mesmo nome
O presidente do conselho fiscal da Associação de Moradores da Providência, Paulo de Andrade, afirmou que o diálogo com a prefeitura vem melhorando nos últimos meses. No entanto, segundo ele, "a paciência está acabando". "Os moradores estão ansiosos que isso venha funcionar rapidamente. Viemos cobrando isso. Todo dia, cobramos informações dos responsáveis. O que a gente sabe é que ainda não definiram o consórcio que vai administrar", disse ele.
Pioneirismo holandês
O primeiro sistema operacional de um teleférico foi montado pelo engenheiro e inventor holandês Wybe Adam, em 1644. Com o avanço tecnológico, os cabos passaram de fibra vegetal para material metálico, até chegarem aos elétricos. A tecnologia foi largamente utilizada em confrontos militares entre Áustria e Itália durante a Primeira Guerra Mundial.
Para lembrar:
Paes testou teleférico em 2012
Em dezembro de 2012, o prefeito Eduardo Paes participou do primeiro teste do teleférico da Providência. Na ocasião, o peemedebista enalteceu a visão panorâmica que se tem da estação no alto do morro, e disse que o teleférico viraria o "Pão de Açúcar 2, a missão".
O equipamento ficaria em fase de testes durante três meses e seria liberado em abril de 2013, de acordo com o planejamento traçado. No entanto, naquele mês, o máximo que ocorreu foi o primeiro teste tripulado. Desde então, a Prefeitura do Rio não conseguiu operacionalizar o serviço.
"Acho que em dois meses vamos colocá-lo para funcionar. É um equipamento complexo, e precisamos fazer tudo com muito cuidado", disse Paes, em abril de 2013. Desde então, dez meses se passaram e o teleférico não saiu do lugar.
O sistema tem 721 metros de extensão e capacidade para transportar até mil pessoas por hora por meio de 16 cabines de alumínio e acrílico, que comportam dez pessoas cada --oito passageiros sentados e dois em pé. Com a inoperância do serviço, as gôndolas compradas pela prefeitura estão atualmente armazenadas em uma das estações.
Considerando as paradas para embarque e desembarque de passageiros, o tempo mínimo de percurso entre a Central do Brasil e a Cidade do Samba, na Gamboa, seria de cerca de oito minutos. Os moradores da Providência teriam direito a uma viagem gratuita de ida e outra de volta, por dia.
7 milhões de passageiros em menos de três anos