Para Le Corbusier, que no início dos anos 1920 estava dedicado ao estudo das mudanças urbanas que caracterizaram a virada do século, “a cidade que dispõe de velocidade dispõe de sucesso”. A ideia de facilitar a livre circulação de carros se transformou em um dos principais paradigmas do movimento modernista, o qual foi adotado nas cidades brasileiras nos anos 1950, quando o país deu início à política de incentivos à indústria automobilística, privilegiando o uso do carro em detrimento do transporte público.
Como resultado desse modelo de planejar com vistas a favorecer a circulação do transporte individual, outras opções foram abandonadas e, a partir dos anos 1950, as cidades foram invadidas por grandes avenidas de passagem, viadutos, pontes e túneis. Seguindo a tradição “das ideias fora de lugar”, conforme definição de Roberto Schwarz, a “cidade da velocidade” de Le Corbusier foi transferida para nossas terras e aqui aplicada, sem as devidas adaptações aos nossos modos de ser urbanos.
A construção da Perimetral carioca é um dos exemplos da adoção desse paradigma sem as adequações ao território urbano preexistente. Iniciada nos anos 1950, na gestão do prefeito Negrão de Lima, essa obra de grandes dimensões foi considerada, à época, um orgulho da engenharia nacional. Ao final da terceira etapa de sua implantação, já na década de 1970, transformou-se em um elevado de 5,5 quilômetros de comprimento, que permitia a ligação rápida do bairro do Caju à região da praça 15, no centro, à avenida Brasil, à ponte Rio-Niterói e ao Aeroporto Santos Dumont. Diariamente, cerca de 40 mil veículos por ali passavam, sempre com vistas a diminuir distâncias e tempos.
Ao longo de toda a sua extensão, a Perimetral foi sendo implantada sem um mínimo de atenção aos edifícios históricos localizados em seu percurso, e menos ainda à relação entre a cidade e a baía da Guanabara. A barreira de concreto elevada foi construída, deixando um rastro de escuridão e feiura. No seu caminho, não importou respeitar os conjuntos históricos que fazem parte da memória do país, como os cinco pavilhões do Mercado Central da praça 15, inaugurado em 1907, dos quais restou apenas uma estrutura, hoje ocupada pelo restaurante Albamar.
Tampouco foi dada atenção ao espaço público mais emblemático da cidade do Rio de Janeiro - o conjunto da praça 15 de Novembro, ladeada por prédios que contam a história colonial e imperial do país. Lá estão o Paço Imperial, a igreja do Carmo, entre outras importantes referências. Os edifícios que hoje abrigam a Casa França Brasil e o Museu Histórico Nacional ficaram quase encobertos pelo viaduto. E, mais deprimente, a extensão da praça 15 até o cais Pharoux e a estação das barcas simplesmente deixaram de existir.
Os bairros cortados pela Perimetral passaram por um processo rápido de desvalorização urbana. Os antigos moradores foram abandonando suas casas e comércios, os galpões se esvaziaram e os baixios da via elevada foram tomados por uma sombra urbana, desprovidos não só da luz do sol, mas especialmente de sinais da vida urbana. A prevalência dos carros e da velocidade exigida se consolidou nessa parte da cidade.
A morte do urbanismo rodoviarista
Com o passar dos anos, a cidade foi tomando consciência do crime de lesa-patrimônio urbano cometido contra a paisagem do Rio de Janeiro, recentemente elevada à condição de Patrimônio Cultural da Humanidade. A via elevada obstruiu a relação da parte histórica da cidade com o mar, afirmando uma modernidade que não se importa com a memória, com o passado ou com a história.
E pior, na sequência da implantação da Perimetral carioca, outras cidades decidiram copiar o modelo incentivador da velocidade e dos carros. Em São Paulo, o Minhocão, construído na década de 1970, secionou todo o bairro de Santa Cecília e, à maneira do Muro de Berlim, deixou órfãos milhares de moradores dos prédios localizados nas suas laterais, obrigados a conviver com o ritmo frenético dos carros e a poluição por eles produzida, em substituição às paisagens urbanas anteriores.
Viadutos e túneis passaram a fazer parte da paisagem urbana brasileira, considerado o melhor e mais rápido caminho entre dois pontos da cidade para o usuário privilegiado: o transporte individual. O mais trágico dos resultados desse modelo foi a disseminação da cultura que tomou conta da nossa sociedade: o carro passou a fazer parte da família, e a cidade deve então privilegiar esse ser inanimado, garantindo-lhe preferência nos espaços públicos, nas ruas, calçadas, tempos de semáforo, garagens e muito mais.
Os arquitetos, urbanistas e gestores públicos passaram a pensar a cidade para o carro e não para as pessoas usufruírem os espaços públicos. Como resultado, há cada vez mais isolamento em condomínios e shoppings, uma reação contra a temerária “violência das ruas”.
Felizmente, a partir do final dos anos 1990, mesmo que tardiamente, tomaram novas formas os debates sobre a cidade que queremos. As velhas crenças defendidas pelo urbanismo modernista se desfaziam no ar. A cidade contemporânea, do século 21, precisava buscar outros caminhos, recuperar velhos aprendizados, que nos ensinam sobre a importância dos espaços públicos, lugares da convivência social por excelência.
A derrubada do elevado carioca se insere nessa nova dinâmica urbana que aparece em intervenções de porte em várias cidades ao redor do mundo. À semelhança de Charles Jencks, que estabeleceu 15 de julho de 1972 (às 15h32) como data oficial da morte da arquitetura moderna, quando da explosão do conjunto habitacional Pruitt–Igoe, em Saint Louis, no Missouri (EUA), podemos dizer que no Brasil o urbanismo modernista de tendência rodoviarista morreu na manhã do dia 24 de novembro de 2013, quando, em apenas cinco segundos, 31 pilares dos primeiros 1.050 metros do elevado da Perimetral foram abaixo.
Mas, afinal, o que temos a comemorar com a derrubada de uma estrutura urbana, construída com recursos públicos? É justo destruir o que já faz parte do cotidiano dos moradores, que na Perimetral se locomovem com “mais” rapidez no dia a dia?
A resposta é simplesmente sim, temos a comemorar a queda da estrutura e os cariocas mudarão suas rotinas diárias. Porque em pouco tempo terão esquecido os transtornos da locomoção e do desperdício do dinheiro público, mas terão como retorno o redesenho da região portuária da cidade.
Operação urbana Porto Maravilha
O conjunto de intervenções na região portuária do Rio, que inclui a derrubada do elevado da Perimetral, insere-se no âmbito da Operação Urbana Consorciada da Área de Especial Interesse Urbanístico da Região Portuária do Rio de Janeiro, instituída pela lei municipal 101/2009 sob a coordenação da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP).
A operação urbana (OU) envolve 6,4 milhões de certificados a serem convertidos em direito de construir (Cepacs) e abrange uma área de 5 milhões de metros quadrados, onde um conjunto considerável de obras de infraestrutura está sendo erguido, como o binário que substituirá a Perimetral, um conjunto de túneis, ciclovias, calçadas e o VLT. A lista inclui ainda equipamentos culturais, como o já inaugurado Museu de Arte do Rio (MAR) e o Museu do Amanhã. Há também a previsão da construção de outros equipamentos culturais na zona portuária, como o Museu Olímpico, o Museu Portinari e o Aquário da Cidade do Rio de Janeiro.
Ao montante elevado de recursos a serem arrecadados, soma-se outra particularidade desta OU, que lhe confere caráter inédito no país: a venda, em lote único, de todos os Cepacs, para um único agente, o Fundo de Investimento Imobiliário Porto Maravilha (FIIPM), criado pela Caixa Econômica Federal com recursos do FGTS, que adquiriu todos os certificados por 3,5 bilhões de reais. Essa operação foi fundamental para o projeto, que se desenvolve com a captação de verba já realizada, garantindo tranquilidade aos possíveis investidores e recursos para as obras de infraestrutura.
No âmbito da OU, a prefeitura do Rio estruturou uma parceria público-privada, comandada pelo consórcio Porto Novo, que por 15 anos ficará responsável pela implantação das obras estruturantes e de infraestrutura da região, bem como pela operação e manutenção dos serviços de conservação e controle da zona portuária. A demolição da Perimetral insere-se nesse conjunto de intervenções.
Algumas diretrizes da OU têm sido objeto de críticas, principalmente aquelas relacionadas às questões relativas ao uso residencial. Existe ali uma população de moradores, caracterizada por rendas baixa e média baixa, para a qual precisam ser garantidos mecanismos de permanência no local, de modo a evitar sua expulsão da área em função da valorização da mesma. Além disso, é criticado o padrão de ocupação previsto na OU, que permite a construção de edifícios de 30 a 50 pavimentos em lotes voltados para a avenida que renasce após a queda do viaduto. O que se critica é que o conjunto arquitetônico construído com esses padrões de uso e ocupação do solo poderá impactar a paisagem talvez até mais do que a antecessora Perimetral.
Nova zona portuária: Reconexões
O projeto “pós-Perimetral”, que ainda depende da demolição da parte restante, prevê a reabilitação da praça 15 - o marco zero da fundação do porto do Rio de Janeiro voltando a ocupar sua dimensão simbólica -, assim como a revalorização dos edifícios históricos ali localizados. Para Fabiana Izaga, vice-presidente do IAB/RJ, “a praça 15 representa a memória da fundação da cidade, uma referência histórica não só para o Rio de Janeiro, mas para todo o Brasil. A Perimetral funciona como um tapume da praça, do Paço Imperial e de sua história. A cidade toda ganhará, é uma área central do Rio com enorme potencial de desenvolvimento” (O Globo, 26/11/2013).
Está prevista a construção de um imenso passeio beira-mar, com aproximadamente 60 mil metros quadrados, ligando o Museu do Amanhã, em construção, à praça 15 e, passando por marcos culturais cariocas, à antiga estação de hidroaviões, prédio modernista projetado em 1937 por Attilio Corrêa Lima, ao Centro Cultural Banco do Brasil, à Casa França Brasil, ao Museu Histórico Nacional, à igreja da Candelária e ao mosteiro de São Bento. Adicionalmente, os novos modos de transporte previstos para a região permitirão o fácil acesso a vários equipamentos culturais: MAR, Centro Cultural José Bonifácio, Armazém da Utopia, Galpão Gamboa e, a partir de 2015, Museu do Amanhã.
Para o arquiteto Luiz Fernando Janot, sem a Perimetral a cidade tradicional encontrará a nova, possibilitando “a conexão de centros culturais da cidade, como o do Banco do Brasil e o MAR”. Inicialmente contrário à derrubada da barreira urbana, considera agora que a nova região portuária pode se transformar em “um lugar aprazível, com superfície”, que, “com um desenho urbano de ótima qualidade, permitirá que o acesso ao Cais do Porto seja livre e desalfandegado” (O Globo, 26/11/2013).
Restabelecer a ligação da cidade com a baía da Guanabara gera expectativas de grandes dimensões. Washington Fajardo, presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, acredita que com “a abertura do passeio público é possível criar uma nova fachada urbana para a cidade, acelerando a discussão sobre a despoluição da baía” (O Globo, 25/11/2013).
A cidade do século 21
A Perimetral, como todas as grandes obras rodoviárias urbanas implantadas a partir da década de 1950, foi projetada segundo a lógica - tão bem definida por Sérgio Magalhães, atual presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil - do não-reconhecimento da cidade preexistente que caracterizou a nossa forma de elaborar planos e projetos para cidades a partir do território vazio, livre e desimpedido.
Sua derrubada pressupõe a aceitação da nova lógica urbana, com o lastreamento das intervenções da cidade contemporânea a partir de outras prioridades: do transporte coletivo em todos os seus modais, dos espaços públicos para a fruição dos cidadãos, do entendimento do transporte individual como apoio secundário e não prioritário à circulação.
Os cinco segundos da manhã do dia 24 de novembro de 2013, assim, ao mesmo tempo em que representam o derrubar de uma barreira simbólica, desafiam os arquitetos e urbanistas a repensar suas atitudes frente à condição pós-moderna da cidade. Temos que aceitar que projetamos para cidades já construídas. A queda da Perimetral não representa apenas a implosão de um símbolo rodoviarista em voga desde os anos 1950. Estamos falando agora da cidade contemporânea, na qual as verdades absolutas perdem espaço. Com a sua queda, a zona portuária carioca retoma o seu vigor, o transporte público passa a ser preferencial e os espaços públicos serão requalificados.
Mas todas essas novas diretrizes que conduzem os planos e projetos para a cidade contemporânea só terão resultados se, na revitalização de partes dela, definir-se como prioridade o morador da área, de modo que não resulte de um investimento dessa dimensão uma cidade não compartilhada pela diversidade de classes sociais e culturais. A nova zona portuária do Rio, que já foi palco das grandes decisões da Colônia e do Império, só terá sucesso se, após a derrubada do muro que ocultava parte da beleza do Rio, se transformar no espaço público privilegiado onde os visitantes chegam e se deparam com a diversidade da sociedade brasileira, revelada nas suas manifestações culturais, sociais.
Enfim, a derrubada da Perimetral só terá sentido se a cidade contemporânea que daí desabrochar for a de todos os cariocas, contemplando, da nova promenade construída, a beleza da baía da Guanabara.
* A arquiteta e urbanista Elisabete França, ex-secretária de Habitação de SP, é reconhecida por sua experiência em projetos de habitação, urbanos e ambientais. Artigo foi publicado originalmente na revista Projeto Design (Edição 407)
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