Espaço: É quando não passam carros
Juan Mejía, 11 anos, no livro “Casa das Estrelas”
Esses dias recebi um vídeo maravilhoso e inspirador sobre a luta de vizinhos, adultos e crianças, do bairro De Pjip em Amsterdam, pelo direito de permanecer e brincar nas ruas. Na ocasião, década de 70, havia sérios problemas de superlotação nas habitações e a invasão de automóveis impedia não somente a vida urbana como as crianças de brincar. Diante desse cenário as crianças, junto com adultos e mediadores, resolveram se organizar e protestar, pedindo que as ruas fossem esvaziadas de automóveis.
Ao me deparar com a beleza do protesto, e com a definição de espaço dada acima, por uma criança colombiana de 11 anos – que disse ser espaço o lugar onde não passam carros –, voltei a me debruçar sobre a urgente questão da mobilidade urbana e falta de espaços públicos adequados para nossas crianças exercitarem sua linguagem universal, que é o brincar – principalmente nessa época de férias de verão, quando elas têm tempo livre para experimentar o espaço fora de casa e da escola.
Faço-nos, então, a pergunta: Qual é o preço, para as cidades, da perda das crianças, e para elas, da perda das cidades?
As crianças precisam da cidade não somente para se mover, e assim viver experiências de socialização e exercício de cidadania, mas também para ampliar sua autonomia e seu protagonismo. Porque somente com a chance de movimentar-se em espaços públicos é que a criança pode adquirir maior compreensão espacial e de administração do seu tempo. Sem contar, é claro, com a possibilidade de exercitar sua criatividade e liberdade de expressão através de brincadeiras entre pares. Ao terem a chance de ocupar as ruas, nossas crianças podem vivenciar também os sentimentos de pertencimento e convivência – não menos necessários e importantes que o brincar para um desenvolvimento físico e emocional saudável.
Mas quantas crianças temos visto, nesse mês quente de férias, brincando pelas ruas e ocupando nossas praças e parques com alegria, imaginação e movimento, ao invés de estar em shoppings lotados ou em casa, relacionando-se sozinhas com as diferentes mídias? O brincar livre e espontâneo saiu da cena, hoje ocupada pelos aparatos eletrônicos que convidam ao confinamento e à paralisia em frente às telas – contribuindo para graves problemas de saúde pública, como a epidemia da obesidade infantil que já acomete 15% da população infantil brasileira.
Não se pode mais negar que as crianças perderam as ruas e ganharam as telas. Devido não somente à saída da maioria das mães para o mercado de trabalho e aumento da violência urbana, mas também à falta de espaços públicos convidativos e adequados ao brincar.
Lembramos de nossas brincadeiras infantis pois elas, além de integrar a memória, fizeram parte de nossa formação social, intelectual e afetiva. Através de brincadeiras nos socializamos, nos definimos e introjetamos muitos dos hábitos culturais e comportamentos da vida adulta. O brincar, além de direito previsto em lei, é a linguagem universal da criança. Brincadeira é coisa séria.
A falta de espaços públicos, concretos ou subjetivos, que impera atualmente, precisa ser revertida. Carros ocupam massivamente as ruas, e há uma grande degradação dos parques e praças em termos de segurança e limpeza, sem contar a violência urbana. Por outro lado, espaços públicos bons e adequados às brincadeiras infantis têm sido ocupados por marcas publicitárias para a criançada. Isso mesmo! Privatização e mercantilização do espaço público para vender é o que tem acontecido, principalmente no período de férias escolares.
Lugares públicos como praias, parques e praças têm, cada vez mais, sido invadidos por eventos mercadológicos para cooptar nossas crianças ao consumo precoce. Esses eventos são criados, com o suposto formato de “entretenimento”, por diferentes marcas adultas ou infantis, mas seu intuito único e exclusivo é atrair a atenção dos “consumidores mirins” para os produtos ali anunciados subliminarmente.
Em outubro do ano passado, um evento da revista infantil Recreio, da maior editora do país, ocupou o Parque Villa Lobos, na Zona Oeste de São Paulo, com estandes e tendas de marcas variadas, sendo as atividades propostas às crianças todas relacionadas aos produtos dos patrocinadores. Claro que os eventos são gratuitos, como não poderia deixar de ser. Mas, quais os direitos de um cidadão que se incomoda com esse tipo de iniciativa no seu espaço de lazer? Pode ele impedir essa invasão nos seus passeios em família?
É urgente, portanto, a tomada de consciência em relação à importância do brincar e à necessidade de ter na cidade ruas, parques e praças para nossas crianças. O que temos feito, como cidadãos, para colaborar na criação de espaços concretos e subjetivos para o brincar? Levamos nossos filhos a passeios em espaços públicos, ao invés de shoppings? Denunciamos as empresas que ocupam áreas públicas e falam diretamente com as crianças? Organizamo-nos como comunidade para proteger as praças do nosso entorno? Optamos por outro tipo de transporte que não os carros? Essas são questões importantes para pensarmos.
As ruas são nossas e as crianças deveriam ser suas verdadeiras donas. Que tal, então, além de cuidarmos do nosso entorno e educarmos as crianças para maior convivência citadina, nos mobilizarmos como fizeram as crianças da década de 70 do vídeo em Amsterdam? Uma boa iniciativa pode ser a mobilização por ruas de lazer (prática comum em cidades de muitos estados brasileiros, inclusive já com legislação), como propõe o Projeto Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, que oferece um passo a passo para levar adiante essa ideia?
Vale finalmente lembrar que o brincar é um direito previsto em lei. Portanto, devemos lutar por políticas públicas que repensem a mobilidade urbana e também por aquelas que criem ou fomentem espaços mais convidativos às brincadeiras infantis – sem a permissão da invasão de comunicação de mercado. As cidades precisam ser mais amigas das crianças.
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