"A inspeção veicular não é o 'melhor remédio', mas é a única alternativa que temos. Seria mal negócio suspendê-la", diz o professor Paulo Saldiva, do Laboratório de Poluição Atmosférica da Faculdade de Medicina da USP.
A polêmica em São Paulo sobre este serviço ganha ares de novela. Sem sinais de entendimento, a briga entre a Prefeitura de São Paulo e a empresa Controlar vem desde o início da atual gestão. No último capítulo, a Justiça de São Paulo negou pedido da Controlar para continuar operando após 31 de janeiro, data limite obtida por liminar pela empresa. Por ora, segundo a assessoria de imprensa da Controlar, a inspeção está ocorrendo normalmente.
No capítulo anterior, a Prefeitura rebateu a declaração do presidente da Controlar de que não há chance de o serviço ser prestado ainda este ano. Em nota, o governo garante que a inspeção veicular será realizada em 2014, "nos moldes da nova lei aprovada pela Câmara de Vereadores, sem cobrança de taxa e com calendário adaptado à idade do veículo"; e que o processo de contratação de novas empresas deve começar no segundo semestre.
Que o paulistano terá de conviver algum tempo sem este mecanismo de controle de emissões em carros, ônibus, caminhões e motos, é certo. Mas, qual a consequência da suspensão para a qualidade do ar e a saúde da população, numa cidade onde a poluição atmosférica mata 4 mil pessoas por ano; onde 90% dessa poluição é produzida pelos carros; e onde a frota de veículos só cresce, tendo dobrado nos últimos 20 anos?
Os impactos da inspeção veicular no município de São Paulo já foram analisados e quantificados em estudos realizados em 2011 (para veículos a diesel) e 2012 (ainda não disponível), explica o engenheiro e pesquisador do Laboratório de Poluição Atmosférica da USP, Paulo Afonso de André, do Núcleo de Equipamentos e Projetos (NEP).
Segundo Paulo Saldiva, é possível estimar em cerca de 350 mortes/ano evitadas por conta do programa de inspeção veicular. Ver outros estudos relacionados ao tema no site do Instituto Nacional de Análise Integrada do Rico Ambiental.
Em outro estudo que coordenou, um grupo de pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP traçou um mapa mundial da poluição atmosférica. Artigo sobre este trabalho foi publicado em setembro do ano passado na revista Nature Reviews Cancer. Saldiva destaca um trecho do estudo, que analisa - e relativiza - o papel da tecnologia como único modo de resolver os problemas nessa área, como mobilidade e saúde pública. O estudo observa que de fato a melhoria tecnológica nos motores no período 1996-2004 conseguiu promover um decréscimo na emissão do material particulado. Mas que, a partir de 2004, fatores como o aumento no número de veículos e a intensidade de seu uso contínuo fizeram retroceder qualquer avanço, e o ar da cidade de São Paulo voltou a apresentar altos índices de poluentes provocados pelos carros.
Abrangência deveria ser maior
"Numa cidade que não tem um plano constituído para o transporte coletivo, nem qualquer estímulo a outros modos de mobilidade, o que resta é a inspeção veicular, por isso não há como descartá-la. Não estamos em Berlim, onde a idade da frota é menor, onde as pessoas não usam o carro tão intensamente e o sistema de transporte público é muito, muito mais eficiente", ressalta o médico. Caso contrário, para ter um ar de melhor qualidade, ficaríamos na dependência tão somente de fatores climáticos, da dispersão dos poluentes pelo vento, pontua Saldiva.
O que não quer dizer que esta forma de controle ambiental esteja sendo feita como deveria. O atual modelo não atinge a frota irregular, e "30% dos carros não fazem a inspeção", conta Saldiva. E a abrangência do serviço como é hoje só inclui a frota da capital, permitindo a entrada de autos com placa de outras localidades, inclusive da Região Metropolitana. Saldiva concorda com a proposta do prefeito Fernando Haddad de estender a obrigatoriedade a todos os municípios paulistas, responsabilizando assim o estado pela prestação do serviço. "Só não entendo porque o governo do estado ainda está de fora", critica.
Com uma frota de 7 milhões de veículos, congestionamentos gigantes, sem políticas para atrair a população a morar mais perto do centro, não é de admirar que em São Paulo a poluição seja tão alta, com o principal componente, o ozônio, fora de controle, além do material particulado (MP10) em níveis 2,5 vezes maiores do que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Para tentar melhorar esse quadro, ele lembra que algumas políticas avançaram nos anos 1980, quando a fabricação de veículos incorporou melhorias tecnológicas e surgiram os carros flex, os combustíveis a etanol e gás, que conseguiu reduzir a poluição dos motores. Mas a mobilidade urbana não melhorou, comenta Saldiva, lembrando ainda o aumento das 'doenças da poluição' (doenças multifatoriais, ensina) como câncer, infarto, alergias, pressão arterial elevada... E, com a intensidade do uso do carro, o combustível queimado nos congestionamentos põe a perder qualquer avanço, diz ele: "Continuamos com o 'programa Jetsons', a visão de que para enfrentar os problemas basta apertar um botão e, sem fazer força, tudo se resolve sem precisar mudar nada". Segundo ele, é o que se vê agora na proposta do carro elétrico, ainda um modelo de transporte individual. "É a 'engenharia do bem'", ironiza, “mas a seguir essa lógica, em breve teremos enormes congestionamento de carros elétricos, o que não resolve o problema da mobilidade”, completa o professor.
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