Habitação, trabalho, lazer e locomoção. São essas as quatro funções sociais de uma Cidade estipuladas na Carta de Atenas, documento firmado em 1933, durante o 4º Congresso de Arquitetura Moderna. Todas estão previstas no Artigo 182 da Constituição brasileira, mas cada uma delas ainda é um objetivo a ser garantido para a maior parte da população. Em Fortaleza, é a Mobilidade Urbana que vem gerando debates nos diversos setores da sociedade, trazendo à tona um conceito que parece novo, a Mobilidade Humana.
O tema movimentou centenas de ciclistas e pedestres numa caminhada noturna, organizada pelo movimento Viva Fortaleza, no último dia 15 de janeiro. A intenção não era somente promover encontros, mas reocupar espaço público, permitir a segurança gerada pela presença da própria população nas ruas e olhar a Cidade sob uma nova perspectiva, chegando a lugares inalcançáveis de dentro dos carros.
Na visão do empresário e integrante do movimento Viva Fortaleza, Paulo Angelim, pensar em Mobilidade Humana é exercer a democracia. “Todos nós somos pedestres, não importa o modal que você use, no momento em que desce do carro, por exemplo, torna-se um. É preciso pensar a mobilidade de uma cidade sob a perspectiva do ser humano, projetar e construir espaços públicos para garantir locomoção e acessibilidade. E isso é ser democrático”.
A expressão é mais do que um simples trocadilho, é um esforço para expor a importância de ajustar as políticas de mobilidade urbana às necessidades das pessoas. É um apelo para que se promova a estrutura necessária não só para veículos individuais, mas também para os transportes coletivos e não motorizados, como a bicicleta e o próprio caminhar. A ideia já está prevista na PNMU – Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/2012), mas ainda não é o que acontece em Fortaleza.
Segundo estimativas do Departamento Estadual de Trânsito do Ceará (Detran-CE), em 2013, a capital contou com uma frota de mais de 976 mil veículos. Dos dez modais contabilizados, os carros representam mais de 55%, enquanto os ônibus aparecem em 9º lugar, representando apenas 1% dos veículos que tomaram as ruas e causaram tanto congestionamento no último ano. Ainda assim, são eles que carregam, diariamente, cerca de 1 milhão de pessoas.
Tempo social perdido
Por que usamos carro e não transporte público? O advogado e doutor em Engenharia de Transporte e Analista de Infraestrutura do Ministério do Planejamento, João Alencar Oliveira, explica que, no caso particular do Brasil, a partir dos anos 50, a política urbana voltou-se para o sistema rodoviário, abandonando os bondes e o sistema ferroviário das periferias das cidades. A escala humana e coletiva foi perdida e criou-se uma nova ordem, baseada no automóvel.
“Buscávamos um modelo de transporte eficiente para a indústria de base da época. E nos últimos 10 anos, ainda houve o incentivo para a classe média também adquirir carros. A estrutura chegou a um esgotamento e só agora estamos nos dando conta de que esse modelo não é bom”.
O custo vem sendo debitado no tempo social perdido, que poderia ser utilizado para lazer ou educação, mas também impacta diretamente no meio ambiente. A queima do combustível emite dois tipos de gases: os de efeito local podem prejudicar, entre outras coisas, a respiração, a visão e o coração dos indivíduos, gerando um grave problema de saúde pública.
Já o CO2, o CH4 e o M2O são Gases de Efeito Estufa (GEE). “Entre 25 e 35 por cento da emissão dos GEE estão nas cidades e vem do transporte”, afirma Oliveira, que também coordenou o Plano Setorial de Transporte e de Mobilidade Urbana para Mitigação da Mudança do Clima (PSTM). Para ele, são necessárias duas frentes de ações, fazer com que a maioria da população se desloque por transportes públicos e não motorizados e, em paralelo, mudar a matriz energética dos modais coletivos.
“Cinquenta por cento do combustível em transportes individuais vem do etanol, mas nós não queremos congestionamentos verdes, então precisamos levar o motorista, mesmo aquele do automóvel verde, para o transporte coletivo. A partir daí, é preciso descobrir como financiar uma tecnologia energética limpa, de forma que ela não seja compensada apenas no bolso do usuário”.
Oliveira defende que quem anda de carro também deve financiar o transporte público. A PNMU traz dispositivos para a criação de mecanismos de tributo, como, por exemplo, o pedágio socioambiental, que cobra pelo tempo que a sociedade perde com aquele carro no tráfego e pela poluição que ele está impondo aos demais. “Nossos governantes precisam investigar: é possível criar uma tributação, injetando dinheiro da gasolina em transporte público? Do ponto de vista do direito administrativo, o uso atípico de uma via pública é estacionar. O uso normal é circular, seja a pé, de bicicleta, de carro, ou de ônibus. As pessoas estacionam em um espaço que custou alguns milhões à sociedade e ninguém tem cobrado nada por isso”, lembra.
Que mobilidade nós queremos?
A mobilidade urbana deve ser para todos. Qualquer cidadão deve ter a sua disposição um sistema de transporte público eficiente, rápido, seguro e com uma tarifa acessível. Também deve ser financiada por todos e ser sustentável. A afirmação ganha força com o Artigo 5o da PNMU que, entre outras coisas, garante: acessibilidade universal; desenvolvimento sustentável; segurança nos deslocamentos das pessoas e justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do uso dos diferentes modos e serviços.
Então, o que falta para efetivar a mobilidade que queremos e que a lei defende? “É preciso que nossa Prefeitura tenha coragem de equilibrar a distribuição das vias entre os diferentes modais. Os automóveis representam apenas 30% da população, mas ocupam 70% das vias. As ciclofaixas são apenas uma pequena parte da solução, a bicicleta precisa estar integrada ao sistema de transporte público e a saída deve passar por uma questão chamada integração modal”, defende Paulo Angelim.
“Há uma discussão sobre investimentos, obras e corredor exclusivo, mas é preciso saber como fazer para que todo cidadão possa locomover-se. Além disso, é preciso ter uma calçada decente, árvores que aliviem a sensação de calor, iluminação e segurança pública, para que seja possível, inclusive, o transporte a pé. A cidade precisa ser receptiva de tal forma, que o pedestre não seja inibido. É preciso devolver vida às ruas”.
Fortaleza apresenta uma malha viária de 2.900 km. Atualmente dispõe de pouco mais de 6 km de ciclofaixas, sendo 4 km na aldeota e 2 km no Mondubim. Conta, ainda, com 74 km de ciclovias, alvos de críticas constantes. “Elas foram feitas há muito tempo, do espaço que sobrou, quando nem se pensava na dinâmica do ciclista. Não são inteligentes, nem passam por manutenção”, aponta Celso Sakuraba, advogado e integrante da Associação dos Ciclistas Urbanos de Fortaleza (Ciclovida).
A ciclovia da Avenida Bezerra de Menezes é um exemplo disso. Cheia de buracos, tomada pelo comércio ambulante e interrompida por árvores que ocupam grande parte do acesso e ainda assim, conta com a presença de inúmeros ciclistas, o que deixa aparente a importância desse tipo de via. Para Marcondes Soares, que trabalha no Mercado São Sebastião e passa diariamente por lá, a ciclovia é garantia de segurança e economia de tempo e dinheiro. “Eu ando de bicicleta, porque vai mais ligeiro, a gente economiza o dinheiro da passagem e quando tem que gastar é só trocar um pneu, é barato. E aqui (na ciclovia), a gente vai longe dos carros, tem mais tranquilidade, antigamente tinha muito acidente, porque carro e ônibus não respeitam ciclista.”
Saiba mais
- O município administra ciclovias na Rua Benjamin Brasil e nas seguintes avenidas: Bezerra de Menezes, Costa Oeste, Sargento Hermínio, Humberto Monte, José Bastos, General Osório de Paiva, Henrique Sabóia, Rogaciano Leite, Godofredo Maciel, Expedicionários, Pompilio Gomes e Presidente Costa e Silva.
- Devem ser ofertados mais 40 km de ciclovias, previstas nos programas de obras já contratados pela Prefeitura. As obras que estão em andamento neste momento e que preveem a construção de ciclovias: BRT – Antonio Bezerra/Papicu, BRT Alberto Craveiro, Requalificação – Avenida Dioguinho, Avenida Paisagística do Serviluz e Valter Bezerra de Sá.
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