Uma proposta para SP: fechar ruas de um bairro aos carros

Economista sugere um projeto piloto para o Itaim, bairro paulistano da zona sul: manter a vocação do lugar para caminhadas

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Fonte: Valor Econômico  |  Autor: André Lara Resende*  |  Postado em: 10 de janeiro de 2014

High Line, em Nova York: renovação bem-sucedida

High Line, em Nova York: renovação bem-sucedida

créditos: Librado Romero/The New York Times

 

Em artigo no caderno de fim de semana do jornal Valor, intitulado "O Itaim sem carros", o economista André Lara Resende defende o modelo adotado em outras partes do mundo, de restrição do automóvel, em nome da qualidade de vida nas cidades. Leia a seguir:  

 

Eu contava passar o fim de ano com um casal amigo na Patagônia, mas acabei obrigado a ficar em São Paulo. A cidade era outra, muito diferente da de antes do Natal. Podia-se caminhar. Fui, com mulher e filhos, tomar café da manhã numa padaria do Itaim. Atravessamos - a pé - a ponte da Cidade Jardim. São 25 anos de São Paulo e a primeira vez que atravesso sem automóvel a ponte, por onde passo quase diariamente. A cidade congestionada inviabiliza a razão de ser do transporte individual, que é o conforto e a eficiência, mas seu pecado maior é tornar a caminhada tão desagradável e perigosa que ela deixa de ser uma opção.

 

A essência das cidades é ser o lugar de interação entre conhecidos e desconhecidos, favorecer o contato pessoal, que, mesmo na era virtual, é fundamental para a civilidade e insubstituível como estímulo à criatividade. A civilização do automóvel levou à dispersão, à redução da densidade urbana. O modelo está exaurido. Investir na expansão da malha viária urbana não é solução. Ao contrário, significa aumentar o subsídio ao uso do automóvel. Reza a chamada lei fundamental dos congestionamentos que para todo aumento da malha viária há um aumento proporcional do número de quilômetros rodados. O investimento na malha viária nunca será capaz de resolver o congestionamento, porque é um estímulo ao uso do automóvel. É dinheiro público usado para subsidiar o transporte individual que hoje paralisa as cidades. O pior é que uso do automóvel impede o surgimento de alternativas, pois expulsa o pedestre, o ciclista e faz que o transporte coletivo de superfície seja absurdamente lento e ineficiente.

 

Como deve estar percebendo a duras penas o prefeito Haddad, para mudar é preciso vencer hábitos arraigados. O imaginário coletivo ainda vê a civilização do automóvel como o paradigma da vida moderna e bem-sucedida. Sem uma visão alternativa, a reação parece ainda ser democraticamente intransponível. É preciso criar a visão de uma vida diferente, do que pode ser a cidade livre do tumor invasivo em que se transformou o automóvel. O pedágio urbano, que já está em prática em várias cidades do mundo, por aqui ainda enfrenta resistências que a demagogia não tem coragem de enfrentar. Já que encarar o problema de peito aberto é considerado politicamente suicida, deveríamos escolher alguns projetos piloto para servir de exemplos, para demonstrar que a vida na cidade pode ser melhor.

 

Veja-se o caso da High Line, estrada de ferro elevada, no West Side de Manhattan, em Nova York, abandonada há décadas, que se transformou num parque suspenso, hoje símbolo da renovação urbana bem-sucedida. Não há atualmente no mundo projeto de renovação urbana inteligente que não contemple "algo inspirado na High Line". O governo inglês acaba de aprovar fundos para a construção de uma ponte ajardinada sobre o Tâmisa. As avenidas ajardinadas para caminhadas eram comum nas grandes cidades, até que fossem destruídas - como o triste caso da avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte, que teve as suas lindas árvores arrancadas - para dar espaço ao automóvel. Onde elas sobreviveram, como o caso da La Rambla, em Barcelona, são contribuição fundamental para apelo e o sucesso da cidade.

 

No século XIX, as grandes cidades foram renovadas, largas avenidas abertas e parques públicos criados para adaptá-las à força da industrialização e à revolução dos transportes. A partir do último quarto do século XX, o modelo começou a dar sinais de exaustão e as cidades, com raras exceções, foram deformadas em nome do automóvel. As cidades bem-sucedidas do século XXI serão diferentes, voltadas para o encontro, para o convívio das diferenças, que é a essência da vida urbana. A cidade do futuro é a cidade da criatividade, do que o urbanista Richard Florida chama de "a classe criativa", que floresce com o convívio. Terão calçadas largas, avenidas arborizadas para caminhadas, bares e restaurantes. Os jardins e os calçadões substituirão o asfalto dos automóveis, assim como já começaram a tomar o lugar dos armazéns, das fábricas e dos trilhos abandonados.

 

A vida nas ruas é tão ou mais importante para o sucesso da cidade do que as atrações culturais e os marcos arquitetônicos. A qualidade de vida é, cada vez mais, o fator determinante na escolha de onde viver. Num círculo virtuoso de civilidade, convívio e criatividade, pessoas qualificadas querem viver onde há qualidade de vida e a qualidade de vida melhora onde há pessoas qualificadas. Não se deve confundir a cidade aberta ao convívio com a cidade totalmente planejada, estratificada, sem espontaneidade, que impede "os usos da desordem", na feliz expressão de Richard Sennett. É um erro recorrente, na tentativa de revitalização urbana, confundir a estrutura física da cidade com a verdadeira cidade, que é o espaço do convívio entre as diferenças. Grandes projetos de infraestrutura são menos relevantes do que podem parecer. Sucesso exige infraestrutura, mas a infraestrutura não garante o sucesso.

 

Passo então à minha sugestão de projeto piloto para São Paulo: fechar o Itaim para os automóveis. Apesar do trânsito infernal, o Itaim resiste como um dos poucos bairros da cidade onde ainda se pode caminhar, onde há vida nas ruas, fora dos automóveis. Fato que só se explica porque o bairro é delimitado por quatro grandes artérias viárias, as avenidas 9 de Julho, Faria Lima, Juscelino Kubitschek e São Gabriel, e não é cruzado por nenhuma grande avenida.

 

O acesso de automóvel seria restrito, só para moradores com garagem, a velocidade limitada a 20 km por hora, por vias estreitadas para dar lugar aos calçadões ajardinados e arborizados. Ônibus só em duas vias transversais exclusivas. Os parques e os calçadões melhoram a qualidade de vida, valorizam os imóveis e aumentam a arrecadação de impostos. Será preciso detalhar a proposta, pensar em como tratar a questão das entregas para restaurantes e o comércio. Novas garagens, só na periferia do bairro. Sabemos que o diabo está nos detalhes, mas por isso mesmo não se pode deixar que eles levem à paralisia.

 

Ousado? Sim. Politicamente impossível? Não creio. O prefeito de Paris acaba de implantar algo muito mais polêmico: transformou as vias expressas nas margens do Sena, que eram as principais artérias do trânsito na cidade, em calçadões ajardinados para "promenades". A reação inicial foi digna da - injusta - fama do mau humor parisiense, mas hoje, alguns meses depois de sua inauguração, até os motoristas de táxi parecem aprovar, apesar de não abrir mão do direito de resmungar.

 

*André Lara Resende é economista

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