O escritor argentino-belga Julio Cortazar (1914-1984) relatou como ninguém a loucura dos grandes congestionamentos que desperdiçam tempo e saúde de milhões de motoristas pelo mundo. No conto Autopista del Sur, publicado originalmente no livro Todos los fuegos el fuego (1966), Cortazar inventa um engarrafamento hiperbólico, que dura meses e dá origem a uma comunidade na estrada, quase uma cidade, com seus dramas humanos.
Muitos anos depois, em 1983, Cortazar e sua mulher Carol Dunlop lançaram o seu Autonautas da Cosmopista, que narra uma viagem que fizeram de Paris a Marselha parando (e acampando) em todos os postos de serviços do trecho rodoviário. Aqui o objetivo foi colocar em questão a ideia de velocidade, sempre perseguida pelos motoristas.
Confira um trecho do Autopista del Sur, escrito em 1964 por Julio Cortazar:
“No começo, a moça do Dauphine havia insistido em fazer a contagem do tempo, se bem que, o engenheiro do Peugeot 404 pouco estivesse ligando. Qualquer pessoa poderia olhar no relógio, mas era como se esse tempo, amarrado ao pulso direito ou ao bip bip do rádio, medisse outra coisa fora do tempo dos que não fizeram a estupidez de querer voltar a Paris pela autoestrada do sul, num domingo à tarde, quando, apenas saídos de Fontainebleau, tiveram de ir em marcha lenta, parar, seis filas de cada lado (já se sabe que aos domingos a autoestrada fica inteiramente reservada aos que voltam para a capital), ligar o motor, avançar três metros, parar, conversar com as duas freiras do 2HP da direita, com a moça do Dauphine à esquerda, olhar pelo espelho retrovisor o homem pálido que dirige um Caravelle, invejar ironicamente a felicidade avícola do casal do Peugeot 203 (atrás do Dauphine da moça) que brinca com a filhinha, diz piadas e come queijo, ou sofrer de vez em quando as exclamações exasperadas dos dois rapazotes do Simca que precede o Peugeot 404, e até descer nas colinas e explorar os arredores sem se afastar muito (porque nunca se sabe em que momento os automóveis da frente recomeçarão a marcha, sendo então preciso correr para que os de trás não iniciem a guerra das buzinas e dos insultos), e assim chegar à altura de um Taunus, na frente do Dauphine da moça que olha a hora a todo o momento, e trocar umas frases desacorçoadas ou brincalhonas com os. dois homens que viajam com o menino louro cujo imenso divertimento, naquelas precisas circunstâncias, consiste em fazer correr livremente seu automovinho de brinquedo por cima dos assentos e do rebordo posterior do Taunus, ou atrever-se a avançar mais um pouco, já que não parece que os carros da frente possam reiniciar a marcha, e contemplar com certa pena o casal de velhos do ID Citroen semelhante a uma gigantesca banheira roxa onde boiam os dois velhinhos, ele descansando os antebraços no volante com ar de paciente fadiga, ela mordiscando uma maçã mais com aplicação do que vontade.
Depois de enfrentar tudo aquilo, de fazer tudo aquilo pela quarta vez, o engenheiro havia decidido não mais sair do seu carro, à espera de que a polícia dissolvesse de alguma forma o engarrafamento. a calor de agosto crescia, a esse tempo, do nível dos pneumáticos, tornando a imobilidade cada vez mais enervante. Tudo era cheiro de gasolina, gritos absurdos dos rapazolas do Simca, brilho do sol reluzindo nos vidros e nos cromados e, por cúmulo, a sensação contraditória de enclausuramento em plena selva de máquinas concebidas para correr. a 404 do engenheiro ocupava o segundo lugar da pista da direita, contando a partir da faixa divisória das’ duas pistas, de modo que tinha outros quatro automóveis à sua direita e sete à sua esquerda, se bem que de fato só pudesse distinguir os oito carros que o rodeavam e seus ocupantes, aos quais já observara até à exaustão. Tinha conversado com todos, menos com os rapazes do Simca, que lhe pareciam antipáticos; entre uma e outra parada discutira-se a situação nos menores detalhes, e a impressão geral era de que até Corbeil-Essones se iria avançar como que a passo ou pouco menos, mas que entre Corbeil e Juvisy o ritmo seria acelerado, desde que os helicópteros e os motociclistas conseguissem desfazer a parte pior do engarrafamento. Ninguém duvidava de que um acidente muito grave tivesse acontecido naquela área, única explicação para aquela lentidão incrível. E com isso, o governo, o calor, os impostos, o tráfego, um assunto atrás do outro, três metros, outro lugar comum, cinco metros, uma frase sentenciosa ou uma maldição contida.
As duas freirinhas do 2HP gostariam de chegar a Milly-la-Fôret antes das oito horas, pois levavam uma cesta de legumes para a cozinheira. O casal do Peugeot 203 se preocupava, sobre tudo, em não perder os jogos televisados das nove e meia; a moça do Dauphine dissera ao engenheiro que para ela pouco importava chegar mais tarde a Paris, mas reclamava por princípio, porque achava absurdo o fato de se submeter milhares de pessoas a um regime de caravana de camelos. Nestas últimas horas (deviam ser quase cinco, mas o calor os castigava insuportavelmente), tinham avançado uns cinquenta metros, segundo o engenheiro, embora um dos homens do Taunus que se aproximara para conversar, trazendo pela mão o menino com seu carrinho, mostrasse ironicamente a copa de um plátano solitário, e a moça do Dauphine lembrasse que esse plátano (se não fosse um castanheiro) tinha estado na mesma linha do seu carro durante tanto tempo que já nem valia a pena olhar o relógio para perder-se em cálculos inúteis.
O entardecer não chegava nunca, a vibração do sol sobre as pistas e as carrocerias dilatava· a vertigem até a náusea. Os óculos pretos, os lenços com água de colônia na cabeça, os recursos improvisados para se proteger, para evitar um reflexo ofuscante ou a fumaça dos canos de escapamento em cada avançada, eram organizados e aperfeiçoados, eram objeto de comunicação e comentário. O engenheiro desceu novamente para esticar as pernas, trocou algumas palavras com o casal de ar camponês do Ariane que precedia o 2HP das freiras. Atrás do 2HP vinha um Volkswagen com um soldado e uma moça que pareciam recém-casados. A terceira fila do lado de fora deixava de interessar-lhe, porque teria que afastar-se perigosamente do 404; enxergava cores, formas, Mercedes Benz, ID, 4R, Lancia, Skoda, Morris Minor, o catálogo completo. A esquerda, sobre a pista do lado oposto, estendia-se um outro matagal interminável de Renault, Anglia, Peugeot, Porsche, Volvo; era tão monótono que, finalmente, depois de conversar com os dois homens do Taunus e de tentar, sem êxito, uma troca de impressões com o motorista solitário do Caravelle, não restava nada melhor que voltar para o 404 e recomeçar a mesma conversa sobre as horas, as distâncias e o cinema, com a moça do Dauphine.
Às vezes chegava um estranho, alguém que se infiltrava entre os automóveis, vindo do outro lado da pista ou das filas externas da direita, que trazia alguma notícia, provavelmente falsa, repetida de carro em carro ao longo. de escaldantes quilômetros. O estranho saboreava o sucesso de suas novidades, o bater das portas quando os passageiros se precipitavam para comentar o’ fato, mas ao fim de certo tempo se ouvia alguma buzina ou o arranque de um motor, e o estranho saía correndo, via-se o sujeito ziguezagueando entre os automóveis para entrar no seu e não ficar exposto à justa cólera dos demais. Ao longo da tarde soubera-se da batida entre um Floride e um 2HP perto de Corbeil, três mortos e um menino ferido, a dupla batida de uma Fiat 1500 com uma caminhonete Renault, que amassara um Austin cheio de turistas ingleses, a capotagem de um ônibus de Orly cheio de passageiros chegados no avião de Copenhague.
O engenheiro estava certo de que quase tudo era falso, embora algo de grave devesse ter acontecido perto de Corbeil e, inclusive, nas proximidades de Paris, para que a circulação tivesse sido paralisada até aquele ponto. Os camponeses do Ariane, que tinham uma granja para os lados de Montreal e conheciam bem a região, falavam de um domingo em que o trânsito havia parado durante cinco horas, mas esse tempo começava a parecer quase insignificante agora que o sol, pondo se à esquerda do caminho, derramava em cada automóvel uma última avalanche de geleia laranja que fazia ferver os metais e ofuscava a vista, sem que jamais uma copa de árvore desaparecesse de todo para trás, sem que outra sombra apenas entrevista à distância se aproximasse como para poder sentir verdadeiramente que o cortejo estava se mexendo ainda que muito pouco, embora fosse preciso parar e arrancar, e bruscamente frear sem nunca sair da primeira, da ultrajante desilusão de passar mais uma vez da primeira ao ponto morto, freio de pé, freio de mão, parar, e assim de novo, mais uma vez e mais outra.
Em dado momento, o engenheiro, farto de inação, decidira aproveitar uma parada, especialmente interminável, para percorrer as filas da esquerda, e, deixando atrás o Dauphine, encontrara um DKW, um outro 2HP, um Fiat 60U, e se detivera junto de um De Soto para trocar impressões com o espantado turista de Washington que quase não entendia francês, mas tinha de chegar às oito horas sem falta na Place de l’Opéra you understand, my wife be awfully anxious, damn it, e se falava disto e daquilo quando um homem com jeito de caixeiro viajante saiu do DKW para contar-lhes que alguém chegara havia pouco com a notícia de que um Piper Club se despedaçara no meio da autoestrada, havendo vários mortos. O americano pouco estava se incomodando com o Piper Club, assim como o engenheiro que ouviu um coro de buzinas e se apressou em voltar para o 404, transmitindo, de passagem, as novidades aos dois homens do Taunus e ao casal do 203. Reservou uma explicação mais detalhada para a moça do Dauphine, enquanto os automóveis avançavam lentamente uns poucos metros (agora o Dauphine estava ligeiramente atrasado com relação ao 404, e mais tarde seria ao contrário, mas, na verdade, as doze filas se mexiam praticamente em bloco, como se um guarda invisível, no fundo da autoestrada, ordenasse avançar. Simultaneamente sem que ninguém pudesse levar vantagem). Piper Club, senhorita, é um pequeno avião de passeio. Ah! que péssima ideia esborrachar-se em plena autoestrada, num domingo à tarde. São dessas coisas. Se ao menos não fizesse tanto calor nos desgraçados automóveis, se essas árvores da direita ficassem finalmente para trás, se o último número do velocímetro acabasse de cair no seu buraquinho preto em vez de continuar suspenso pela cauda interminavelmente.
Em determinado momento, (começava a anoitecer suavemente, o horizonte de tetos de automóveis tingia-se de lilás) uma enorme borboleta branca pousou no para-brisa do Dauphine, e a moça e o engenheiro admiraram-lhe as asas na breve e perfeita suspensão de sua imobilidade; com exasperada nostalgia, viram-na afastar-se, sobrevoar o Taunus, o ID roxo dos velhos, dirigir-se rumo ao Fiat 600 já invisível desde o 404, voltar até o Simca onde uma mão caçadora tratou inutilmente de agarrá-la, voejar amavelmente sobre o Ariane dos camponeses, que pareciam estar comendo alguma coisa, e perder-se depois em direção à direita. Ao anoitecer, a fila deu uma primeira avançada importante, de quase quarenta metros; quando o engenheiro olhou distraidamente o velocímetro, a metade do 6 havia desaparecido e um pedaço do 7 começava a desprender-se do alto. Quase todos ouviam rádio, os do Simca o ligaram no máximo e cantavam em coro um twist, com sacudidelas que faziam vibrar a carroceria; as freiras passavam as contas de seu terço, o menino do Taunus dormira com o rosto colado a um vidro, sem soltar o automóvel de brinquedo. Em algum momento (já era noite fechada) chegaram estranhos com mais notícias, tão contraditórias como as outras, já esquecidas. Não tinha sido um Piper Club mas um planador pilotado pela filha de um general. Era exato que uma caminhonete Renault amassara um Austin, mas não em Juvisy e sim quase às portas de Paris; um dos forasteiros explicou para o casal do 203 que o asfalto da autoestrada cedera à altura de Igny e que cinco automóveis capotaram ao meterem as rodas dianteiras na valeta. A ideia de uma catástrofe natural se propagou até o engenheiro, que deu de ombros sem fazer comentários. Mais tarde, pensando nessas primeiras horas de escuridão em que respiraram um pouco mais livremente, lembrou-se de que em dado momento botara o braço para fora da janela, para bater na carroceria do Dauphine e acordar a moça que dormira encostada na direção, sem tomar conhecimento de um novo avanço. Talvez já fosse meia-noite quando uma das freiras lhe ofereceu timidamente um sanduíche de presunto, supondo que estaria com fome. O engenheiro aceitou por cortesia (na verdade sentia náuseas) e pediu licença para dividi-lo com a moça do Dauphne, que aceitou e comeu gulosamente o sanduíche e a tablete de chocolate que lhe passara o passageiro do DKW, seu vizinho do lado esquerdo. Muitos saíram dos automóveis superaquecidos, porque outra vez passaram horas sem avançar; começava-se a sentir sede, já esgotadas as garrafas de limonada, de Coca-Cola e até de vinhos. A primeira a se queixar foi a menina do 203, e o soldado e o engenheiro abandonaram os automóveis com os pais da menina para procurar água. Na frente do Simca, onde o rádio parecia ser alimento suficiente, o engenheiro encontrou um Beaulieu ocupado por uma mulher madura, de olhar inquieto. Não, não havia água mas podia dar umas balas à menina. O casal do lD entreolhou-se um momento, depois a velha meteu a mão numa bolsa e tirou uma latinha de suco de frutas. O engenheiro agradeceu e quis saber se estavam com fome e em que podia lhes ser útil, o velho mexeu negativamente a cabeça, mas a mulher pareceu concordar sem palavras. Mais tarde, a moça do Dauphine e o engenheiro exploraram juntos as filas do lado esquerdo, sem se afastarem muito; voltaram com alguns biscoitos que levaram à velha do ID, bem a tempo de voltarem correndo aos seus automóveis, sob uma chuva de buzinas.
A parte esses avanços mínimos, era tão pouco o que se podia fazer que as horas acabassem por se sobrepor, por ser sempre a mesma na lembrança; em determinado momento, o engenheiro pensou em riscar esse dia de sua agenda, e conteve uma risada, mas, pouco adiante, quando começaram os cálculos contraditórios das freiras, dos homens do Taunus e da moça do Dauphine, viu-se que teria sido conveniente fazer melhor a conta. Os rádios locais haviam suspendido as transmissões, e somente o homem do DKW possuía um aparelho de ondas curtas, empenhado em transmitir notícias da bolsa. Por volta das três da madrugada pareciam haver chegado a um acordo tácito para descansar, e até o amanhecer a fila não se mexeu. Os rapazes do Simca tiraram colchões de borracha e os estenderam do lado do automóvel; o engenheiro desceu o encosto do assento dianteiro do 404 e ofereceu os lugares às freiras, que recusaram; antes de deitar-se um pouco, o engenheiro pensou na moça do Dauphine, muito quieta contra o volante, e como quem não dá muita importância propôs-lhe que trocassem de automóvel até o amanhecer; ela recusou, alegando que dormia muito bem de qualquer maneira. Durante certo tempo se ouviu o menino do Taunus chorando, deitado no assento traseiro, onde devia sentir muito calor. As freiras ainda rezavam quando o engenheiro se deixou cair no assento e foi adormecendo, mas seu sono estava próximo demais da vigília e ele acabou por acordar suando e inquieto, sem compreender, no primeiro momento, onde estava; soerguendo-se, começou a perceber os movimentos confusos do exterior, um deslizar de sombras entre os automóveis, e vislumbrou um vulto que se afastava até a borda da• autoestrada, adivinhou as razões, e mais tarde saiu também do carro, sem fazer ruído, indo aliviar-se à beira da estrada; não havia cercas nem árvores, somente o campo negro e sem estrelas, algo que parecia um muro abstrato limitando a faixa branca do asfalto, com seu rio imóvel de veículos. Quase tropeçou no camponês do Ariane, que balbuciou uma frase ininteligível; ao cheiro de gasolina, persistente na autoestrada calorenta, somava-se agora a presença mais ácida do homem, e o engenheiro voltou quanto antes para seu automóvel A moça do Dauphine dormia apoiada na direção, uma mecha de cabelo contra os olhos; antes de subir no 404, o engenheiro se divertiu explorando, na sombra, seu perfil, adivinhando a curva dos lábios que sopravam suavemente. Do outro lado, o homem do DKW também olhava a moça dormir, fumando em silêncio.
Pela manhã avançou-se muito pouco, mas o suficiente para dar a esperança de que nessa tarde se abriria o caminho para Paris. Às nove horas chegou um estranho com boas notícias: haviam tapado as fendas e breve se poderia circular normalmente. Os rapazes do Simca ligaram o rádio, um deles subiu na capo automóvel, gritou e cantou. O engenheiro pensou que notícia era tão duvidosa como as da véspera e que o estranho aproveitara a alegria do grupo para pedir e conseguir uma laranja dada pelo casal do Ariane. Mais tarde, chegou um outro desconhecido com a mesma artimanha, mas ninguém quis dar-lhe nada. O calor começava a subir e as pessoas preferiam permanecer nos automóveis à espera de que se concretizassem as notícias. Ao meio-dia, a menina do 203 começou de novo a chorar; a moça do Dauphine foi brincar com ela e fez-se amiga do casal. Os do 203 não tinham sorte: à sua direita estava o homem silencioso do Caravelle, alheio a tudo o que acontecia em redor, e à sua esquerda tinham de aguentar a exuberante indignação do motorista de um Floride, para quem o engarrafamento era afronta exclusivamente pessoal. Quando a menina tornou a se queixar de sede, ocorreu ao engenheiro ir falar os camponeses do Ariane, certo de que naquele automóvel havia fartura de mantimentos. Para grande surpresa sua, os camponeses mostraram-se muito amáveis; compreendiam que em semelhante situação era necessária a ajuda mútua, e achavam que, se alguém se encarregasse de comandar o grupo (a mulher fazia um gesto circular com a mão, abrangendo a dúzia de automóveis que os cercava) não passariam privações até chegar em Paris. Ao engenheiro incomodava a ideia de arvorar-se em organizador, e preferiu chamar os homens do Taunus para conferenciar com eles e com o casal do Ariane. Pouco depois, consultaram sucessivamente todas as pessoas do grupo. O jovem soldado do Volkswagen concordou imediatamente, e o casal do 203 ofereceu poucos alimentos que lhes restavam (a moça do Dauphine havia conseguido um copo de groselha para a menina que ria e brincava). Um dos homens do Taunus fora consultar os rapazes do Simca, obteve um assentimento irônico; o homem pálido do Caravelle encolheu os ombros e disse que para ele dava na mesma, que fizessem o que achassem melhor. Os velhos do ID e a do Beaulieu estavam visivelmente satisfeitos, como se sentissem mais protegidos. Os motoristas do Floride e do DKW não fizeram observações, e o americano do De Soto olhou-os com assombro e falou qualquer sobre a vontade de Deus.
Foi fácil para o engenheiro propor que um dos passageiros do Taunus, no qual depositava instintiva confiança, ficasse encarregado de coordenar as atividades. No momento, não faltaria comida a ninguém, mas era necessário arranjar água; o chefe a quem os rapazes do Simca tratavam de Taunus, simplesmente para se divertirem, pediu ao engenheiro, ao soldado e a um dos rapazes que explorassem as imediações da autoestrada e oferecessem alimentos em e bebidas. Taunus, que evidentemente sabia mandar, tinha calculado que poderiam satisfazer, na hipótese menos otimista, as necessidades de um dia e meio no máximo. No 2HP das freiras e no Ariane dos camponeses havia alimentos suficientes para esse tempo, e se os exploradores voltassem com água, o problema estaria resolvido. Mas somente o soldado regressou com o cantil cujo dono exigia, em troca, comida para duas pessoas. O engenheiro não encontrou ninguém que pudesse oferecer água, mas a viagem lhe serviu para perceber que, além de seu grupo, estavam se constituindo células com problemas semelhantes; em dado momento, o passageiro de um Alfa Romeu recusou tratar daquele assunto com ele, dizendo-lhe que se dirigisse ao representante de seu grupo, cinco automóveis atrás, na mesma fila. Mais tarde, viram voltar o rapaz do Simca que não pudera arranjar água, mas Taunus calculou que já tinham bastante para os dois meninos, a velha do ID e o das mulheres.
O engenheiro estava contando à moça do Dauphine seu circuito pela periferia (era uma hora da tarde, o sol os encurralava nos automóveis quando ela o interrompeu com um gesto e lhe indicou o Simca. Em um instante o engenheiro chegou até o automóvel e segurou pelo cotovelo um dos rapazes se refestelava em seu assento para beber grandes goles na garrafa que trouxera escondida no blusão. Diante de seu gesto furioso, o engenheiro respondeu aumentando a pressão no braço; o outro rapaz desceu do automóvel e se jogou em cima do engenheiro, que recuou dois passos e o esperou, quase com pena. O soldado já vinha correndo, os gritos das freiras alertaram Taunus e o companheiro; Taunus ouviu o relato do acontecido aproximou-se do rapaz da garrafa dando-lhe duas bofetadas. O rapaz gritou e protestou, choramingando, enquanto o outro resmungava sem se atrever a intervir. O engenheiro tirou-lhe a garrafa e deu a Taunus. Começavam a soar buzinas e cada qual voltou para seu automóvel, aliás inutilmente, dado que a fila avançou apenas cinco metros.
A hora da sesta, sob um sol ainda mais forte do que na véspera, uma das freiras tirou a coifa e sua companheira molhou-lhe as frontes com água de colônia. As mulheres improvisavam aos poucos suas atividades samaritanas, indo de um automóvel a outro, ocupando-se das crianças para que os homens ficassem mais livres; ninguém se queixava, mas o bom humor era forçado, baseava-se sempre nos mesmos trocadilhos, num ceticismo de bom tom. Para o engenheiro e a moça do Dauphine, o mais vexatório era sentirem-se suados e sujos; quase os enternecia a total indiferença do casal de camponeses ante o cheiro que lhes brotava das axilas cada vez que vinha falar com eles ou repetir alguma notícia de última hora. Por volta do entardecer, o engenheiro olhou por acaso pelo espelho retrovisor e encontrou, como sempre, o rosto pálido e de traços tensos do homem do CaravaIle, que, tal como o gordo do Flonde, se mantivera alheio a todas as atividades. Achou que seus traços estavam ainda mais afilados e indagou consigo mesmo se ele não estaria doente. Mas depois, quando em conversa com o soldado e a mulher, teve ocasião de olhá-lo mais de perto, achou que o homem não estava doente; era, por assim dizer, outra coisa, um alheamento. O soldado do Volkswagen contou-lhe depois que sua mulher tinha medo daquele homem silencioso que não largava nunca a direção e parecia dormir acordado. Surgiam hipóteses, criava-se um folclore para lutar contra a inação.
Os meninos do Taunus e do 203 tinham ficado amigos, depois brigaram mas logo se reconciliaram; seus pais se visitavam, e a moça do Dauphine ia de vez em quando ver como estavam passando a velha do ID e a do Beaulieu. Quando, no entardecer, sopraram bruscamente umas rajadas de tempestade, perdendo-se entre as nuvens suspensas no ocidente, as pessoas se alegraram pensando que ia refrescar. Caíram algumas gota, coincidindo com um avanço extraordinário de metros; ao longe, brilhou um relâmpago, o calor aumentou ainda mais. Havia tanta eletricidade na atmosfera que Taunus, com um instinto que o engenheiro admirou sem comentários, deixou o grupo em paz até como se temesse os efeitos do cansaço e do calor. Às oito horas, as mulheres se encarregaram de distribuir a comida; decidira-se que o Ariane dos camponeses seria o almoxarifado geral, e que o 2HP das freiras serviria de depósito suplementar. Taunus fora, pessoalmente, falar com os chefes dos quatro ou cinco grupos vizinhos; depois, com a ajuda do soldado e do homem do 203, levou uma certa quantidade de alimentos aos outros grupos, retornando com mais água e um pouco de vinho. Resolveu-se que os rapazes do Simca cederiam os colchões de borracha à velha do ID e à o Beaulieu; a moça do Dauphine levou-lhes cobertores escoceses, o engenheiro ofereceu seu automóvel, a que chamava, brincando, de vagão-leito, para quem precisasse. Viu com surpresa, que a moça do Dauphine aceitou o oferecimento, para já naquela noite compartilhar os assentos reclináveis do 404 com uma das freiras; a outra foi dormir no 203, com a menina e sua mãe, enquanto o marido passava a noite deitado no asfalto, enrolado num cobertor. O engenheiro não tinha sono e jogou dados com Taunus e seu amigo; em dado momento, juntou-se a eles o camponês do Ariane e falaram de política, bebendo uns goles de aguardente que o camponês dera a Taunus naquela manhã. A noite não foi ruim; havia refrescado e brilhavam algumas estrelas entre as nuvens.
Ao amanhecer o sono os apanhou, essa necessidade de se agasalhar que nascia com o cinzento da madrugada. Enquanto Taunus dormia junto do menino no banco traseiro, seu amigo e o engenheiro descansaram um pouco na parte da frente. Entre duas imagens de sonho o engenheiro acreditou escutar gritos à distância e viu um clarão indistinto; o chefe de outro grupo veio dizer-lhes que a trinta automóveis mais adiante houvera um princípio de incêndio num Estafette, provocado por alguém que tinha querido ferver seus legumes clandestinamente. Taunus fez piada sobre o caso, enquanto ia de carro em carro para ver como os demais haviam passado a noite, mas ninguém deixou escapar o que queria dizer. Nessa manhã, a fila começou a mexer-se muito cedo e tiveram de correr e agitar-se para recuperar os colchões e os cobertores, mas como por toda parte devia estar acontecendo a mesma coisa, ninguém se impacientava nem buzinava. Ao meio-dia, tinham avançado mais de cinquenta metros, e começava a divisar-se a sombra de um bosque do lado direito da estrada. Invejava-se a sorte dos que, nesse momento, podiam chegar até o acostamento e aproveitar o frescor da sombra; talvez houvesse um riacho, ou um córrego de água potável. A moça do Dauphine fechou os olhos pensando numa chuveirada caindo-lhe pelo pescoço e pelas costas, escoro rendo-lhe pelas pernas; o engenheiro, que a olhava de soslaio, viu duas lágrimas rolarem pelo seu rosto."
Leia também:
Automóvel, o cigarro do futuro
Tanta potência para entupir as ruas?
Imposto sobre bicicleta no Brasil é maior que o de carros