“As ruas do Rio de Janeiro (e falo do Rio porque sou daqui, embora tenha certeza que na maioria das cidades brasileiras é assim) são verdadeiras pistas de obstáculos. Se para o cidadão comum às vezes é difícil caminhar (que digam os mais idosos ou aqueles com carrinhos de bebê), imagina os as pessoas com deficiência, cadeirantes que não acessam quase que lugar nenhum e nós que não enxergamos. Carros mal estacionados, buracos nas calçadas, orelhões, mesinhas de restaurante, postes, calçadas levantadas por conta de raízes de árvore ou saídas de garagem, hidrantes, barraquinhas diversas e até pontos de ônibus são só alguns exemplos de objetos que, cedo ou tarde, acabarão cruzando o caminho de um cego. Quando digo cruzar o caminho, por favor entendam da maneira mais dolorida possível.
E o pior é que isso normalmente acontece quando você precisa ir a uma entrevista de emprego, a uma reunião importante ou encontrar a garota dos seus sonhos… Ou seja, sempre que um galo na testa ou um inchaço na canela ou além são completamente indesejáveis.
É como quando você, amigo leitor, está caminhando com aquela calça branquinha e de repente vem um carro, passa por cima de uma poça e plaft! Você fica imundo e encharcado a um só tempo! só que, para os entraves aos quais me refiro nesse texto, nem é preciso ter chovido recentemente. Além do que, pensando bem, acho que nós cegos estamos ainda mais vulneráveis que vocês aos banhos involuntários de cada pós-tempestade. Ao menos vocês têm a opção de correr quando detectam poças muito grandes na rua junto a si; não que isso garanta um salvo conduto, eu sei, mas é que nem isso os cegos podem; é que, ainda que fôssemos capazes de detectar tais acúmulos aquosos, sair correndo para evitá-los traria males ainda maiores que um banho de lama.
Segundo a Associação Internacional dos Cegos Acidentados (na sigla “Ai que dor!”), os obstáculos são classificados de acordo com a nossa parte do corpo mais atingida em um confronto direto com cada um deles. E podem ter certeza que sobra para pé, canela, joelho, cabeça, etc. Os orelhões, rechonchudos e amplos em cima e fininhos embaixo, representam uma ameaça até injusta de tão maquiavélicos. Como eles são sustentados por uma fina haste, é bem difícil que a nossa bengala as toque antes que a cabeça já tenha golpeado a parte de cima desses criminosos aparatos. Duvido muito que exista algum cego que nunca tenha dado de cara num telefone público. E pensar que antigamente, quando os orelhões eram realmente úteis e utilizados, você além de dar com a cara, ainda atropelava, de forma até pouco digna, a pessoa que estivesse ali parada, de costas, tranquilamente ao telefone.
Existem também umas coisinhas de ferro ou de cimento, acho que o nome bonito é fradinho, que servem para os carros não estacionarem nas calçadas. As menorzinhas, do tipo chamado gelo baiano, são um convite aos tropeções, enquanto que as mais altinhas e finas, embora igualmente maciças, por vezes escapam ao esquadrinhamento de nossas bengalas, mas em geral as nossas canelas não têm a mesma sorte. Elas são tão perigosas que às vezes eu sinto falta dos próprios carros. Pelo menos eles são grandes (ou seja, perceptíveis pela bengala ou pela diferença auditiva) e são feitos de materiais cujo choque, ainda que dolorido, não deixa tantas marcas. De modo que esses pequenos aparatos urbanos, concebidos para compensar a falta de educação dos muitos que vão largando os veículos em qualquer canto, são apelidados por nós de anticegos. Nessa linha, os hidrantes (e seus primos pirulitos), que são um pouco mais altos porém tão de ferro quanto os fradinhos, são carinhosamente chamados de capa cegos, e a razão vocês podem imaginar.
Por tudo isso – e acredite, por muito mais -, muitas vezes, em nossas vidas, todo cego que se preze traz consigo uma coleção de hematomas, que são sempre substituídos, mas quase nunca eliminados. Todos os desprovidos da visão dos olhos que já andaram sozinhos pelas ruas e calçadas já deram um chute, uma canelada, uma joelhada ou uma cabeçada em alguma dessas parafernálias urbanas. E eu, de verdade, não sei decidir o que é pior, se a dor da pancada ou a comoção popular que se forma em redor do pobre ceguinho que acabou de se estrepar.
Assim, se nós, pessoas e atletas com deficiência visual, não enxergamos obstáculos – porque vencemos os limites, transformamos o impossível em algo ultrapassado -, é preciso notar que nós também não enxergamos os obstáculos, esses todos aí, que estão por todas as calçadas brasileiras. Portanto, por favor, tirem-os daí ou tirem-nos daqui! As nossas canelas agradecem.”
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