A tragédia da ‘civilização do automóvel’ é resultado das políticas do Estado que sempre foram generosas com a indústria automotiva
Há exatos 40 anos, num ensaio considerado visionário, André Gorz publicou um texto intitulado ‘Le Sauvage’ (O Selvagem). O ensaio, datado de 1973, é considerado pelos ambientalistas como o ‘Manifesto contra o carro’ por antecipar a tragédia da civilização do automóvel. No texto, Gorz afirma que “o carro fez a cidade grande inabitável, a fez fedorenta, barulhenta, sufocante, empoeirada, congestionada”.
O carro instaurou uma lógica e um estilo de vida que promete liberdade, mas no lugar de ir e vir se tornou uma espécie de cárcere privado. Paradoxalmente, promete agilidade, mas proporciona a lentidão dos tempos pré-industriais. Promete ganhar tempo, mas na realidade faz perder tempo.
Eles entopem os estacionamentos das universidades privadas e públicas, dos aeroportos, dos shoppings, dos supermercados. Estacionar já se tornou um drama. Ter uma vaga cativa – e gratuita – é um privilégio que se assemelha ao da casa própria. Nos grandes centros já é mais caro estacionar do que almoçar.
O estresse no trânsito é alto, os engarrafamentos enormes, a irritação é grande, mas ninguém quer abrir mão do carro. E ainda tem mais: quanto mais potente, belo e equipado, melhor. O sociólogo Richard Sennett, em seu livro A nova cultura do capitalismo, afirma que as pessoas se movem pela "paixão consumptiva" que assume as formas de "envolvimento em imagística e incitação pela potência", ou seja, as pessoas quando consomem não compram apenas produtos, mas prazer e poder.
O fantástico e maravilhoso mundo prometido pelo carro tem um outro lado menos edificante. O carro provoca o caos, confusão, barulho, estresse, poluição, perdas econômicas e, o pior, mata. E mata muito. As estatísticas dão conta de que mata em média mais de 50 mil pessoas por ano, apenas no Brasil.
A tragédia da ‘civilização do automóvel’ tem como um dos responsáveis as políticas do Estado que sempre foram generosas com a indústria automotiva. No caso brasileiro, o modelo de desenvolvimento ancorou nas montadoras a sua base crescimentista. Desde Juscelino Kubistchek, a indústria automotiva recebe incentivos, subsídios e isenções.
Erigimos o ‘Império do automóvel’ e agora - da prometida sociedade do bem-estar -, ele, o carro, nos empurra para um crescente mal-estar. A mobilidade prometida pelo carro aos indivíduos se tornou fonte de angústia, estresse e sofrimento.
Outra mobilidade e cidade são possíveis, porém é preciso superar a cultura carrocentrista e promover ousadas políticas públicas que invistam pesado no transporte coletivo.
*Cesar Sanson é professor de sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
**Texto resproduzido originalmente no site Brasil de Fato
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