Respirar é missão árdua. Se mexer é quase impossível. O contorcionismo é uma habilidade fundamental para os usuários dos trens do Subúrbio. Se mover dentro dos vagões de forma voluntária é quase impossível. Os corpos ficam bem próximos, colados; a música alta (oriunda de celulares) incomoda, gente grita para o maquinista adiantar a viagem, o calor sufoca, mulheres brigam por conta das mãos bobas... Enfim, um inferno sobre trilhos.
Desde que a prefeitura de Salvador passou a gestão dos trens para o governo do estado, há 90 dias, o número de usuários dos trens aumentou em 10 mil por dia, segundo avaliação da Companhia de Transporte de Salvador (CTS), responsável pelo sistema ferroviário. Eram 9,3 mil passageiros diários no sistema que roda de Paripe até a Calçada, e hoje são quase 19 mil. No entanto, nenhum novo trem foi colocado em operação. Resultado: superlotação.
O excesso de passageiros provocou, anteontem, a depredação de um vagão. Ontem, o CORREIO percorreu as dez estações que compõem o sistema e fez a viagem com maior fluxo de passageiros da linha que liga Paripe até a Calçada, às 7h20.
“A via-crúcis começa na estação de Paripe e vai piorando ao longo das nove estações seguintes, onde desce um passageiro e sobem, em média, dez em cada vagão. Isso aqui é um inferno na terra. Muita gente, poucos trens, o intervalo entre um e outro demora 40 minutos. É um inferno”, reclama a estudante Carla Almeida, que mora em Paripe e estuda em Nazaré.
Usuários finalmente chegam à estação da Calçada e respiraram aliviados após a difícil viagem
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O presidente da CTS, Carlos Martins, afirma que a procura aumentou depois do início das obras de requalificação da Baixa do Fiscal e da abertura da cratera da BR –324, que fez com que o deslocamento de ônibus entre o Subúrbio e a Calçada passasse a demorar duas horas e o trem se tornasse a ser a melhor opção.
“De trem, além de custar só R$ 0,50, o trajeto é feito em menos de uma hora. Quem vai de ônibus paga R$ 2,80 e passa umas duas horas engarrafado por conta das obras. O problema é que recebemos o sistema sucateado. Os trens têm mais de 40 anos de uso, vivem quebrando”, explica Martins.
O custo mensal do sistema é de R$ 2,5 milhões. “As tarifas pagas pelos usuários correspondem a cerca de 8% desse valor, o que deixa um déficit grande”, completa Martins.
Segurança
A superlotação é tanta que os vagões circulam de portas abertas. Mas não há fiscais nem monitores de acessos nas estações. A cada parada, a gritaria fica mais intensa e os vagões mais cheios. Sobram ofensas para a mãe do maquinista.
“Aqui só tem um segurança em cada estação. Os trens ficam tão cheios que as portas vão abertas. Tentamos reclamar, mandar o pessoal entrar e fechar a porta, mas somos ameaçados e temos que deixar seguir viagem mesmo com um monte de gente pendurada na porta correndo o risco de cair e morrer”, relata um segurança que prefere não se identificar.
Ontem, bastaram 80 segundos, para que os três vagões, onde cabem cerca de cem passageiros, fossem lotados na estação de Paripe, às 7h20. O desafio para entrar é árduo. O empurra-empurra é intenso e vale a lei do mais forte. “O povo sai empurrando aqui. Ninguém consegue passar. Vão te jogando e você vai se amassando para o fundo do vagão”, reclama o eletricista Antonio Santos Costa, que mora em São Tomé de Paripe.
Quem fica na desvantagem são os idosos e gestantes. “Aqui ninguém respeita nada disso. São poucos bancos e o pessoal vem das outras estações já sentado. Chego a esperar até duas horas para conseguir entrar em um trem menos cheio”, conta a dona de casa Eliana Pereira Urbano, que tem uma filha de 3 meses e ontem pegou o trem em Escada para marcar uma consulta médica em Paripe.
“Aqui é uma lata de sardinha. Na guerra da Síria você consegue se mexer mais do que aqui dentro”, brinca o técnico em radiologia Robson dos Santos Santana, morador de Escada, que sempre tenta viajar perto da porta para facilitar a saída. Afinal, não é raro o passageiro não conseguir descer na estação que deseja porque fica espremido no meio das pessoas.
No fim da tarde, passageiros lutam por lugar na estação da Calçada; com a filha de 3 meses no braço, Eliana reclama da falta de respeito
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Calor
A temperatura também não ajuda. Só uma das quatro composições possui ar-condicionado. “Mas com tanta gente o ar não suporta. É um calor dos infernos que o povo chega a passar mal. Aqui é o inferno da Primavera de manhã porque vai todo mundo cheiroso, mas, na volta pra casa, o perfume compartilhado é o de suor. Vira o inferno de Verão”, brinca o aposentado Antonio Almeida, morador de São Tomé de Paripe.
A única coisa boa da viagem, por unanimidade entre os passageiros, é a vista para as praias suburbanas. Isso quando dá para ver, já que na maioria das viagens a única visão que se tem é o cangote do passageiro em frente.
Sistema é sucateado e quebras são constantes, reconhece governo
“É um sistema completamente sucateado”. Essa é a avaliação do presidente da Companhia de Transporte de Salvador (CTS), Carlos Martins, sobre o sistema de trens que liga os bairros da Calçada até Paripe. Atualmente, há quatro composições com três vagões cada para operação.
Mas, constantemente, esse número é reduzido. “Os trens são velhos e entram em manutenções periódicas, quebram direto. Temos quatro composições de trens disponíveis. Três ficam operando – umas delas só vai até Platatorma – e outra fica em reserva para emergência. Mas, hoje (ontem), esse de emergência está quebrado”, destacou Martins, acrescentando que o órgão está realizando uma avaliação geral do sistema para propor alternativas.
Em caráter emergencial, ele pretende aumentar o número de trens em circulação. “Temos dois trens parados por falta de peças. Estou tentando junto à companhia de trens de São Paulo pegar essas peças que eles não estão usando mais. Se eles fizerem a doação, teremos mais dois trens disponíveis o que pode reduzir o tempo de espera”, indica Martins.
Os trens circulam a cada 40 minutos entre 6h e 19h30. Para o futuro, a ideia do governo é substituir os trens por VLT (Veículo Leve sobre Trilho). “É um sistema mais adequado para quando se tem uma população grande no entorno dos trilhos, como no Subúrbio. É um sistema moderno e mais rápido”, explica Martins. Ele diz que ainda estão sendo feitos estudos e, em seguida, será lançado edital de licitação.
Ainda não há prazos, mas o investimento seria na ordem de R$ 1,2 bilhão. O VLT ainda seria estendido para cidades da Região Metropolitana. “A ideia é chegar em Candeias, Camaçari e Simões Filho”, ressalta. A obra, demoraria pelo menos 18 meses.
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