Meu avô, José Arlindo Gomes, era um caminhante urbano.
Adorava percorrer as ruas da cidade, dizia que a vida estava nas pernas e viveu saudável, por muitos e muitos anos, chegando pertinho dos cem. Por certo, teria ido mais longe não fosse o fato de se cansar da solidão de viúvo e de outra solidão que a vida lhe impôs ao lhe tirar a audição.
Com o tempo, desistiu dos aparelhos e das caminhadas e aos poucos foi se deixando definhar, até chegar tranquilamente ao fim. Penso em como é diferente caminhar pelas cidades duas décadas depois da partida de meu avô e busco compreender essa diferença analisando alguns aspectos da vida urbana, nesses dias em que uma nova onda de assaltos assusta minha cidade.
Percorro-a em noite calma. Está silenciosa e tem as calçadas vazias. Observo os espaços externos: não há adornos por onde se anda, nada que agrade o olhar do passante: vasos, flores, adereços. Toda a beleza está resguardada nos espaços internos. Não há beleza compartilhada pelos moradores nas áreas públicas da cidade em que vivem.
Ilustração: Caroline Pires
Qualquer caminhar que não tenha um objetivo utilitário, como ir ao banco, ao supermercado, atravessar rapidamente uma rua, acontece agora nas pistas para caminhadas, que têm se expandido nas cidades e se tornam os territórios “corretos” do outrora livre ato de andar.
Nessas trilhas, não estamos em contato com a cidade. Não são as mesmas calçadas percorridas por meu avô. Ao longo das calçadas de minha cidade há anúncios icônicos da falta de segurança que assola o caminhante: os orelhões têm correntes, portas e janelas têm grades e os jardins são protegidos por cercas elétricas sobre os muros.
Comparo essas calçadas com aquelas das noites anteriores à chegada da TV, em que famílias se sentavam em rodas de conversa. Há nas cidades uma lacuna incômoda nesses horários em que não há pessoas entretendo-se nas ruas.
O psicanalista James Hillman postulava que há alma nas cidades e que é preciso resgatar e manter espaços citadinos em que nossa alma se manifesta. Os textos de Hillman em português estão disponíveis no livro Cidade & Alma, e neles Hillman ensina que andar acalma, sendo por essa razão que a pessoa ansiosa mede o chão com seus passos, seja esperando o bebê nascer ou aguardando as notícias da sala da diretoria.
Por outro lado, anuncia que ao caminhar imprimimos um ritmo orgânico aos estados mentais depressivos, embotados, com agitações reverberantes, e esse ritmo orgânico do compasso ritmado do caminhar adquire significado simbólico.
O psicanalista postula ainda que a linguagem do caminhar acalma a alma, e as agitações da mente começam a tomar um rumo. Caminhando, estamos no mundo, encontramo-nos num lugar específico e, ao percorrer esse espaço, tornamo-lo um lugar, uma moradia, um território, uma habitação com um nome. A mente é então contida em seu próprio ritmo.
Quando não podemos caminhar, pergunta-se Hillman, para onde irá a mente contida?
Sairá correndo, ou ficará paralisada, movimentando-se apenas no ritmo da farmacologia: estimulantes e calmantes, relaxantes e excitantes? Ele afirma que uma cidade que não permite caminhar é uma cidade que nega moradia à mente.
“Podemos estar dirigindo-nos para a loucura, quando privados dessa atividade natural que é caminhar, já que provavelmente exista uma cura arquetípica que ocorre enquanto caminhamos. A ansiedade normalmente costuma nos travar os gestos e as pernas”, nos diz o psicanalista. “Quando estamos nas garras da ansiedade, como nos pesadelos, ficamos quase sempre incapazes de mover as pernas. Há uma associação entre pavor e o movimento dos pés. Quanto menos movimentamos as pernas, mais sujeitos estamos à ansiedade”.
Na Europa, durante o Iluminismo, caminhava-se muito, principalmente em jardins ou em torno deles, e a arte da jardinagem atingiu seu apogeu. Os urbanistas da época, afirma Hillman, eram movidos por razões estéticas.
As cidades mais modernas não oferecem espaço para caminhadas e têm problemas nas calçadas. Uma vez que os pés são ignorados, as ruas rapidamente se tornam regiões de crime e, prontamente, janelas são fechadas e portas são trancadas.
O crime nas ruas, afirma o psicanalista, começa com um mundo em que não se caminha; começa na prancheta do urbanista inepto, que vê as cidades como um amontoado de arranha-céus e de shopping centers com ruas que servem meramente de acesso entre eles, como se uma cidade fosse apenas um mapa viário, e não um organismo vivo.
Atenta às ideias desse estudioso, escrevo com a intenção de compartilhar seus pensamentos com a esperança de que, quando cresça meu mais novo e doce amor, esse anjo de olhos grandes encontre espaços para caminhar alegremente pelas calçadas das cidades em que passar. E eu desejo a ele que as cidades e as calçadas o recebam, e a todas as gerações que vêm chegando, com segurança e alegria.
Felizes calçadas, meu neto! Feliz Cidade!
*Beatriz Xavier Flandoli é psicóloga, residente em Campo Grande (MS). É mestre em Educação e professora da UFMS.
**O artigo acima foi enviado como contribuição ao Mobilize Brasil pelo geógrafo José Donizete Cazzolato