Entrevista: especialista comenta sobre a PEC 90

Nas últimas semanas, o debate sobre transporte ganhou ainda mais força no país

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Fonte: The City Fix Brasil  |  Autor: Luísa Zottis  |  Postado em: 08 de julho de 2013

João Alencar

João Alencar

créditos: Marcello Casal JRABr

 

As manifestações populares que encheram as ruas das principais capitais, reivindicando redução tarifária e qualidade de serviço, inflamaram o diálogo sobre o assunto e desencadearam medidas como o anúncio presidencial de R$ 50 bilhões para a mobilidade urbana e a redução no preço de passagens Brasil afora.

 

Muito se fala sobre tarifas, mas pouco sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 90, que pretende incluir o transporte no rol dos direitos sociais assegurados pelo artigo 6º da Constituição Federal, tais como educação, saúde, segurança e moradia. A proposta, aprovada na última semana na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Congresso Federal, ainda será submetida a outras instâncias antes de ser publicada oficialmente ou não.

 

Para entender melhor, o TheCityFix Brasil conversou com o doutor em Engenharia de Transportes e advogado João Alencar Oliveira Júnior, que sugere que a PEC ainda é pouco esclarecedora. Segundo ele, caso seja aprovada, será necessária uma “tradução” do que se entende por transporte. “Ela já representa um avanço, mas deveria estar mais focada sobre que direitos quer assegurar”, afirma.

 

O especialista lança diversas provocações acerca desta e outras questões diretamente relacionadas com as reivindicações das ruas: “será que estou discutindo apenas mobilidade urbana como transporte público do ponto de vista de preço de passagem? Ou é pertinente contextualizar para as políticas de mobilidade urbana que serão feitas na cidade a fim de resolver o problema de transportes? Quais as opções políticas e quais os custos delas?”.

 

Confira a entrevista na íntegra:

TheCityFix Brasil: Em que implicaria, efetivamente, a mudança do termo “transporte” por “mobilidade urbana” na PEC 90?

João Alencar: O conceito “mobilidade urbana” tem um papel de direito no sentido de viabilizar o acesso aos outros direitos assegurados na Constituição, ou seja, ela é um direito-meio. Esse direito não se dá apenas por transporte motorizado. Calçadas em boas condições para a população, qualidade do pavimento e existência de declive e aclive, por exemplo, são condições para a mobilidade. Ou seja, a questão é qual é exatamente a política de mobilidade urbana, e não apenas de transporte público, para as cidades.

 

TCFB: Nesse contexto, como ficam os transportes não motorizados?

JA: A percepção que se tem no meio técnico é de que não se pode restringir a transporte público. Há que se falar em transporte não motorizado, em bicicleta enquanto modalidade de transporte, inclusive na viagem a pé. Todos esses elementos contribuiriam para uma requalificação da discussão acerca do que é se viver em cidades.

 

TCFB: Então o que podemos entender como o “transporte” enquanto direito social?

JA: A proposta peca por generalidade à medida que só coloca esse gênero. Ela não esclarece se é transporte urbano ou no âmbito da cidade, por exemplo. Quem vai dar a conformação de um gênero tão amplo como o “transporte”? Já a Lei de Mobilidade Urbana traz o conceito de priorização ao transporte não motorizado sobre o privado e público, o próprio transporte público sobre o privado. Além disso, a mobilidade urbana não está só no município, mas na região metropolitana.

 

TCFB: Existe uma conexão entre a PEC 90 e a Lei de Mobilidade Urbana?

JA: Uma emenda constitucional, na “geografia” no artigo 6º da constituição, é entendida como norma programática, que presume materialidade, ou seja, precisa de políticas. Uma das políticas é a Lei de Mobilidade Urbana, que precisa ser conformada à realidade local. Por exemplo, a solução de mobilidade urbana em São Paulo não vai ser a mesma em Belo Horizonte, não vai ser a mesma em Fortaleza, não vai ser a mesma de Iguatú, no interior do Ceará.

As realidades são diferentes, a dimensão urbana é diferente; as características da cidade são diferentes, as características de renda da população são diferentes. Então há a necessidade de traduzir a normativa federal para a realidade local. Nessa tradução, há a necessidade de envolver meios e canais de articulação com a sociedade para que sejam traçadas opções políticas.

 

TCFB: Como fica a questão da tarifa zero, fortemente reivindicada nas manifestações sociais?

JA: Não existe transporte gratuito. O que se esquece para essa questão é que hoje, 40% de toda a demanda é atendida pelo vale-transporte, com o qual o trabalhador só compromete 6% da renda com o custo, ou seja, os 94% restantes são arcados pelas empresas na economia formal. Ninguém está lembrando deste aspecto.

Outra questão do transporte gratuito é uma demanda artificial que ele poderia gerar. Por exemplo: preciso percorrer dois ou três quarteirões na minha cidade e entro no coletivo para um deslocamento que poderia ser feito a pé. Será que outro indivíduo que está naquele espaço não o necessita para percorrer três ou quatro quilômetros?

Para atender os dois, preciso aumentar a frota; para aumentar a frota vou aumentar o custo variável; ao fazer tudo isso, aumento o custo do sistema. Temos que ter racionalidade.

 

TCFB: Você considera que a mobilização social em prol do transporte de qualidade, a PEC 90 e a própria Lei de mobilidade urbana contribuem para reduzir o uso do carro?

JA: A cultura do carro há de ser enfrentada na medida em que colocamos as opções na mesa. Quer dizer, é possível reduzir tarifa com otimização do sistema do transporte público aumentando o espaço exclusivo para ônibus, aumentando a velocidade média e comercial? É.  E o papel do carro terá de ser discutido, porque não vamos deixar de tê-lo.

 

Este texto foi publicado originalmente no site The City Fix Brasil.



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