Durante o século XX o rodoviarismo relegou à bicicleta o papel de instrumento para prática esportiva ou para o lazer de final de semana. As ruas foram dominadas por automóveis, ônibus e caminhões, veículos perigosos, com pesos e velocidades letais aos seres humanos. A bicicleta foi confinada aos parques, competições esportivas ou periferias das cidades -- onde a "falta de opção” manteve sempre um número alto, porém socialmente invisível, de ciclistas.
Com o aumento exponencial do congestionamento motorizado na última década e a ação criativa de movimentos de ciclistas, o dualismo "transporte e trânsito” começou a ser arejado. A ideia de que a bicicleta pode ser uma opção para os deslocamentos cotidianos começou a sair da invisibilidade, ganhando a cada dia a simpatia de parcelas cada vez maiores da população. A pergunta que deve ser respondida agora não é mais "se” a bicicleta é possível, mas sim "como” atender ao desejo da população e a necessidade das cidades de ampliar o uso deste modal. Essa resposta começou a ser formulada há algumas décadas em muitas cidades do norte da Europa e da Ásia. Mais recentemente, cidades da América do Norte e também do Sul também começaram a encontrar seus caminhos. No Brasil, seguimos bastante atrasados.
Em parte, ainda existe uma visão que nos afasta da construção de alternativas: "Não podemos estimular a bicicleta, pois as ruas são muito perigosas” ou "as ruas já estão congestionadas, não tem espaço para construir ciclovias e devemos priorizar o transporte coletivo”.
É certo que as ruas se tornaram cenário de uma epidemia invisível: só no estado de São Paulo, morrem mais pessoas vítimas de colisões e atropelamentos de trânsito do que as vitimadas por armas de fogo. É visível também o estado do congestionamento, mas ele certamente não é causado por bicicletas. A barbárie das mortes e mutilações no que erroneamente se chama de "acidentes” de trânsito ou a divisão injusta do espaço de circulação para privilegiar o transporte individual motorizado é o problema a ser tratado, não uma conclusão que provoque imobilismo. Além disso, não há oposição, mas sim complementaridade entre a inserção da bicicleta no tecido urbano e a prioridade que deve ser dada inequivocamente aos meios coletivos de transporte público e à caminhada.
A bicicleta é um veículo adequado para qualquer cidade do mundo, tenha ela clima quente ou frio, topografia plana ou montanhosa, muitos ou poucos habitantes, abundância ou carência de recursos. Exemplos como Copenhague (onde neva em boa parte do ano), São Francisco (que possui topografia mais acidentada que São Paulo), Nova Iorque (com uma população de megacidade) ou Bogotá (com pouco orçamento municipal) desmontam os mitos mais elementares sobre a bicicleta.
A decisão política e social de inserir a bicicleta no cotidiano das cidades deve buscar contornar os desafios locais e constituir um modelo que permita o conforto e a segurança aos usuários, que dê conta de estimular a demanda reprimida e que se inspire (mas não necessariamente copie) as experiências e práticas de outras cidades.
A maioria das cidades brasileiras ainda não possui modelos e práticas urbanas e de transportes para incluir a bicicleta. Ou melhor, possuímos modelos atrasados e que sofrem com a dificuldade administrativa, com falta de planejamento e de orçamento para implementação e experimentação destas práticas. Em São Paulo, por exemplo, a atual administração anunciou a construção de 400 km de "vias cicláveis” até 2016. A utilização de um termo que escapa da associação quase mimética entre bicicleta e ciclovia é um sinal positivo.
Ainda assim, boa parte dos projetos anunciados já existe e está parada em alguma gaveta de algum órgão municipal, em estágios diferentes entre projeto funcional, básico, executivo e licitação de obras. Alguns datam da década de 1990. O atraso e a lentidão entre concepção e execução de um projeto cicloviário faz com que os conceitos utilizados em boa parte dos projetos estejam bastante defasados frente às necessidades e possibilidades urbanas para a bicicleta. Será desejável adequa-los (e isso é possível em muitos casos), mas é fundamental implantá-los.
Durante muitos anos (e até hoje) a concepção sobre a inserção da bicicleta no Brasil esteve intrinsecamente associada à construção de ciclovias em canteiros centrais de avenidas ou na orla (de rios, mares ou ferrovias). Este modelo não é único e nem sequer o melhor para todas as situações e geralmente atende apenas à lógica de inserir a bicicleta no "espaço que sobra e sem atrapalhar o ‘bom andamento’ do fluxo motorizado”. Tal visão geralmente resulta em pistas estreitas, caras, sinuosas, que impermeabilizam o único local permeável de uma via e que oferecem pouca conexão com os lotes, desperdiçando o potencial da bicicleta para a readequação urbana do entorno e para os pequenos deslocamentos.
A construção de cidades cicláveis apresenta como desafio aos gestores e planejadores a necessidade de possuir um olhar detalhado sobre o tecido urbano. Não se trata mais de criar estruturas para promover deslocamentos de massas de pessoas entre o ponto A e o ponto B. A bicicleta é um veículo que pode ser amplamente usado pela população em distâncias de até 8 km, portanto é fundamental que ela seja pensada como instrumento de transformação do entorno, e não condicionada ao "espaço que sobra”.
O princípio orientador é a adequação de todas as vias de uma cidade ao deslocamento por bicicletas, fazendo com que qualquer cidadão capaz de exercer o pequeno esforço envolvido no ato de pedalar a distância que deseja tenha tal direito garantido. Assim como o fluxo de pedestres, as restrições ao uso da bicicleta por razões de segurança ou conforto deveriam ser exceção, guardada geralmente às vias expressas.
Este princípio não quer dizer construir ciclovias em todas as ruas, pois a gama de ferramentas é bastante ampla e interdisciplinar: adoção de medidas de acalmamento de tráfego (traffic calming) para o compartilhamento das vias nos bairros; conexão com terminais de transporte público através de redes alimentadoras e bicicletários; redução das distâncias através da distribuição mais equitativa de moradias, empregos e serviços; ciclovias segregadas onde não é seguro ou adequado o compartilhamento; programas educativos; sistemas de bicicletas compartilhadas; redução dos limites de velocidade e da impunidade dos crimes de trânsito; restrição à circulação de veículos motorizados em algumas áreas da cidade; disponibilização de informações sobre trajetos; instalação de bicicletários em vias públicas e interior de prédios, entre outras.
As cidades brasileiras precisam começar a experimentar estas ferramentas, desenvolver seus modelos próprios e considerar que a constituição de políticas públicas para beneficiar o uso de bicicletas gera um círculo virtuoso. A combinação destas políticas com a construção de paradigmas sociais, econômicos e urbanos que sejam mais inteligentes para a vida em comunidade e utilização dos recursos disponíveis resulta em benefícios para a saúde física e mental dos habitantes, ajuda a reduzir os danos ambientais e estimula a cidadania.
Não se trata de acreditar que todos os cidadãos devem andar de bicicleta em todos os seus deslocamentos, mas sim que todos aqueles que desejam possam fazê-lo. E isso fará muito bem para as cidades.
Thiago Benicchio é jornalista e atualmente ocupa o cargo de Diretor-Geral da Ciclocidade – Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo