Bikes invadem as ruas do Rio

Pedalada é realizada uma vez por mês na capital carioca. Mas também em Sampa, Curitiba, Porto Alegre, Brasília, Salvador, Nova York, Paris, Bruxelas e mundo afora.

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Fonte: O Globo  |  Autor: Gustavo Stephan  |  Postado em: 05 de março de 2013

Bicicletada Rio de Janeiro

Bicicletada no centro do Rio: toda última sexta-feira do mês

créditos: facebook.com/BicicletadaRiodeJaneiro

 

Em volta de uma árvore de tronco largo na Cinelândia, Centro do Rio de Janeiro, bicicletas espalham-se entre o cinema Odeon e o imponente Theatro Municipal, dois cartões postais da cidade. De repente, alguém grita a plenos pulmões: "Bicicleta!". Os outros sobem em suas magrelas e completam, em coro: "Um carro a menos!", despertando olhares curiosos dos pedestres no calçadão. É o sinal para o início da bicicletada, um movimento que reúne, uma vez por mês, ciclistas cariocas. Eles saem às ruas não com o intuito de desfrutar do visual da cidade ou pedalar com amigos. A bicicletada é um ato político e o objetivo é chamar a atenção, entre outros problemas, para a falta de segurança nas ciclovias da cidade. Protestos à parte, o Rio acaba de ganhar o título de Capital da Bicicleta. O prêmio foi dado pelo Transport Research Board, um instituto de pesquisa com sede em Washington.

 

Desde 2009, no início da primeira gestão do prefeito Eduardo Paes, a malha cicloviária foi duplicada, passando de 150 quilômetros para 302 quilômetros, batendo a meta estabelecida pela prefeitura. Foi lançado também o programa de compartilhamento de bicicletas Bike Rio. As duas novidades tiveram peso na premiação, que veio na forma de uma menção honrosa. Só que a falta de segurança nas ruas para os ciclistas, a ausência de uma rede de ciclovias protegidas — como ocorre em cidades mundo afora como em Amsterdan, Buenos Aires, Copenhague e Nova Iorque —, a não adoção de uma sinalização adequada nas vias públicas e a escassez de campanhas de conscientização para estimular a boa convivência entre ciclistas e motoristas são problemas que colocam em xeque o título concedido à cidade.

 

Poucos dias depois da premiação, uma pequena manifestação de ciclistas interrompeu o trânsito numa noite de sexta-feira, na praia de Botafogo, rota de 5% das viagens diárias de bicicletas. O motivo do protesto era a morte do montanhista Fábio Muniz, de 42 anos.

 

O ciclista voltava para casa depois de ministrar uma aula de montanhismo próximo ao local do acidente, quando foi atropelado. Segundo informações da assessoria de imprensa da Polícia Civil, com dados da 10ª Delegacia de Polícia, responsável pelo caso, Fábio teria sido atingido por uma motocicleta. O fato abriu uma série de debates entre os grupos de ciclistas da cidade, que formaram uma comissão para acompanhar de perto o trabalho da delegada titular, Andréa Nunes Menezes.

 

— Precisamos de detalhes da perícia para tirarmos lições do fato. Faz toda diferença saber se ele usava capacete, se estava seguindo pela via correta. Os ciclistas precisam respeitar o Código de Trânsito Brasileiro, mas queremos também ser respeitados — disse Rosa Maria Mattos, uma das integrantes do braço carioca do grupo Massa Crítica, um movimento internacional em prol do transporte público individual.

 

 

Foto: Içamento da Ghost Bike em homenagem ao Fábio Muniz

Ghost-bike içada durante a manifestação: homenagem ao ciclista Fábio Muniz
(Foto: Bicicletada Rio de Janeiro)

Durante o protesto pela morte de Fábio, os cerca de 150 manifestantes presentes ao ato içaram uma bicicleta, que foi amarrada a um poste. Mundialmente esse gesto vem se repetindo nos últimos anos, sempre que um ciclista morre no trânsito. O ato já foi ficou conhecido por Ghost Bike e é difícil precisar quando e onde ele começou. A polícia protestou, alegando que a bicicleta não poderia ficar pendurada num poste. Como a legislação municipal autoriza o estacionamento em postes, na falta de bicicletários, os ciclistas alegaram que não havia infração. Como o próprio policial, segundo relato dos manifestantes, não conhecia as regras de uso das bikes, a homenagem ficou ali por uns dias pendurada no poste, a quatro metros de altura. Dias depois, ela foi retirada do local.

 

Viagens aumentaram 93,5% 

Longe de se tornar uma referência mundial em mobilidade urbana de qualidade e no transporte individual, o Rio de Janeiro passa por um momento crucial no tema. Cada vez mais, as magrelas estão se tornando uma modalidade de transporte, deixando para trás o estigma de equipamento usado meramente para o lazer. Entre 2004 e 2012, os cariocas tiraram as companheiras enferrujadas da garagem ou compraram novas, o que proporcionou um crescimento de 93,5% no número de viagens em bikes. Só no município, o número pulou de 217 mil por dia para 420 mil, segundo dados da ONG Transporte Ativo, também utilizados pela prefeitura. Até 2016, ano das Olimpíadas, a meta da prefeitura é ampliar a malha para 450 quilômetros, ou seja, um acréscimo de 150 quilômetros ao atual percurso.

 

Por outro lado, a infraestrutura cicloviária, mesmo duplicada, é insuficiente. Os trechos construídos pelos prefeitos que antecederam Paes estão sendo refeitos. Além disso, há ciclovias que, como os ciclistas costumam brincar, “conectam o nada a lugar nenhum”. O problema se soma à falta de conhecimento sobre as regras para a presença de bicicletas nas ruas, segundo o Código Brasileiro de Trânsito. Ciclistas, motoristas, pedestres e até as autoridades desconhecem as normas, o que parece ser uma contradição, dado que a prefeitura do Rio decidiu apostar nas bicicletas para estimular uma mudança radical na mobilidade urbana da cidade. Entre os motivos está o fato de o governo de Eduardo Paesquerer reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 30% até 2030.

 

Para a restauradora Darlin Matos, que também participa dos movimentos da Massa Crítica e não desgruda de Mafalda — nome de batismo da sua bike —, a falta de educação no trânsito é o principal obstáculo do município para atingir seus objetivos. Ela admite que, diferentemente de movimentos de ciclistas em outras capitais, como em São Paulo, no Rio ainda falta coesão. E, embora muitos ciclistas sigam toda a regulamentação de trânsito, há aqueles que, por falta de experiência, cometem infrações. Andar na contramão, por exemplo, e em ritmo muito lento, pode aumentar a sensação de segurança, mas atrapalha os motoristas na via, além de tornar muito mais sérias as consequências de um acidente.

 

— Os motoristas costumam fechar as bicicletas no trânsito, como quem diz ‘aprende que seu lugar não é a? — comenta Darlin, que costuma ser rotulada de camicaze entre seus familiares. — Tenho todos os equipamentos obrigatórios na bike, uso capacete e não sou contraventora, tenho tanto direito quanto os motoristas de usar as ruas da cidade com a Mafalda.

 

Baixo investimento 

Os investimentos em infraestrutura cicloviária ainda são pequenos. Em 2013, por exemplo, enquanto a prefeitura destinará vultosas quantias aos corredores expressos (BRTs), as ciclovias receberão R$ 16 milhões. O investimento é muito menor do que o orçamento de cidades como Curitiba, por exemplo, que ganhou projeção mundial devido a políticas de mobilidade urbana e vai destinar R$ 22 milhões às ciclovias só este ano. Para título de comparação, Curitiba tem apenas 1,7 milhão de habitantes, enquanto o Rio de Janeiro tem 6,3 milhões.

 

Perguntado sobre a lentidão na instalação e reconstrução de ciclovias inoperantes na cidade, o secretário de Meio Ambiente do município, Altamirando Fernandes Moraes, que também é ciclista, foi taxativo com relação aos entraves: 1. a negociação com os órgãos de trânsito, que é demorada, e 2. a liberação de verbas, já que a demanda da população ainda não é tão grande, se comparada a outros modais. A grande aposta da prefeitura agora é oferecer transporte de massa de qualidade, para desencorajar o uso dos automóveis. Mas, segundo ele, a importância das bicicletas será em distâncias curtas:

 

— A cultura brasileira ainda acha chique ter um carro. Mudar essa mentalidade demora, mas cada vez mais os cariocas estão percebendo a eficácia da bicicleta como meio de transporte.

 

Estima-se que existam hoje 5,3 milhões de bicicletas na região metropolitana do Rio de Janeiro e que aproximadamente 1,5 milhão delas saem às ruas com frequência. A Zona Oeste do Rio também tem grande peso nesse cálculo, já que abriga a maior parte dos ciclistas. Moradores da região já usam as bicicletas no dia a dia há décadas e o motivo é simples: falta de transporte público de qualidade.

 

Enquanto alguns usam as bicicletas como meio de transporte, outros lançam mão dela apenas para ficarem na moda. É que andar de bike virou modismo e as redes redes sociais estão ajudando a propagar a ideia. Não à toa imagens de artistas internacionais pedalando foram recentemente veiculadas: de Marilyn Monroe a Audrey Hepburn, de Ingrid Bergman a Alfred Hithcock, e até Charles Chaplin.

 

Em 2009, quando o prefeito Paes lançou o programa Rio Capital da Bicicleta, sua principal promessa era a ampliação das ciclovias na Zona Oeste. De fato, houve aumento da malha na região. Mas, no período de 2013 a 2016, a prioridade se voltou para o entorno dos locais onde se realizarão os grandes eventos esportivos, a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Enquanto os bairros da Barra da Tijuca e Jacarepaguá receberão sozinhos 36,7% das novas ciclovias, as demais áreas da Zona Oeste ficarão com 17,6%. A Zona Sul e o Centro, com Tijuca e Grajaú, receberão 17% e a Zona Norte, que antes possuía apenas 7,5% das ciclovias da cidade, terá mais 28,7%.

 

Espera-se que o compromisso melhore a vida dos ciclistas da região, já que a maioria anda em meio aos carros, como a revisora de livros Rafaella Lemos. Ela sai de casa, em Água Santa, e pedala até o trabalho, em Botafogo, pelo menos duas vezes na semana. São cerca de 50 km no total. Ela gasta em média uma hora de viagem em cada trecho. Se fosse de ônibus, Rafaella perderia mais 20 minutos na viagem de casa ao trabalho.

 

— Só há ciclovia quando chego à Zona Sul. Mas fujo do engarrafamento e chego mais rápido. No meu trabalho tem vestiário.

 

Menos emissões 

Além da implantação de vestiários, empresas podem ajudar de outras formas. Segundo a secretaria municipal de Meio Ambiente, um incentivo são bicicletários. Empresários que queiram colocá-los nas ruas podem pedir autorização, pelo e-mail ciclovia@pcrj.rj.gov.br. Estabelecimentos como restaurantes, shoppings e academias costumam ter ganhos no próprio negócio. Outra medida que tem sido anunciada pela prefeitura são campanhas educativas. Nenhuma delas, porém, teve grande alcance até o momento.

 

Outro meio de dar espaço às bicicletas é dificultar a circulação de veículos. Além de reduzir faixas de ruas para criar ciclovias, há cidades do mundo que reduzem estacionamentos — vinte bicicletas podem ficar no mesmo espaço de apenas um carro —, aumentam multas por infrações, como invasão de ciclovias, ou cobram pedágios nas zonas mais movimentadas. É o que está acontecendo na Cidade do México, como contou o diretor do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP) para a América Latina, o mexicano Bernardo Baranda.

 

— Agora, quem estaciona no Centro, paga. A verba é usada para melhorar infraestrutura para pedestres e ciclistas, com construção de calçadões e ciclovias.

 

O modelo segue o sucesso de cidades como Barcelona, na Espanha, e Copenhague, na Dinamarca. Segundo Beranda, por cada quilômetro de ciclovia construída, estima-se a redução de 100 toneladas de emissões de CO2, além de ganhos de US$ 58 mil para a economia local. A redução com gastos de saúde pública também é importante, chega a US$ 1,9 milhão por ano, pelos cálculos do ITDP.

 

No entanto, no país que ainda mantém incentivo à compra de automóveis, com redução do Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI), essas sanções só se tornam realidade quando a situação é de caos completo, como ocorreu em São Paulo. A capital teve que iniciar um rodízio de placas em dias alternados para não parar de vez. Foi o ponto de partida para o fortalecimento de movimentos de ciclistas e melhoria do transporte público.

 

Segundo o secretário de Transportes do Rio, Carlos Roberto Osório, medidas para incentivar o transporte individual e desencorajar o automóvel estão sendo avaliadas. Sem previsão de implantação, no entanto.

 

— Estamos estudando possibilidades. Aumentaremos a fiscalização e as multas sobre ciclistas que cometem infrações, e sobre motoristas. Pensamos em medidas restritivas aos carros, mas estão em fase embrionária.

 

Mesmo com entraves, o momento é bom para o diálogo com o poder público, segundo o fundador da ONG Transporte Ativo, José Lobo, referência no assunto. Ele tem sido a voz da sociedade civil nas negociações com a prefeitura para implantação de novas ciclovias e afirma que há um objetivo comum:

 

— O investimento ainda é muito pequeno frente ao aumento de usuários. A prioridade na cidade ainda é dada à infraestrutura para os carros. Mas os gestores públicos sabem que a bicicleta também facilitará a vida deles, se não a cidade vai parar e as emissões de gases de efeito estufa vão aumentar.

 

Patins e skates

Nesse ponto, não há transporte melhor do que os movidos a propulsão humana. As bikes são as mais populares, mas há muitos cariocas que lançam mão de outros meios.

 

Quem acha que patins é brincadeira de criança precisa conhecer Érika Cordeiro. Professora de patinação, ela passa mais da metade do dia com os pés apoiados nas rodinhas. Vai ao supermercado, ao médico, visita amigos, tudo sem tirar os patins.

 

— Moro em Copacabana e, para distâncias curtas, só uso patins. As piruetas ficam para o horário das aulas. No trânsito, eu respeito todas as regras, como qualquer veículo. De quebra, ainda é uma atividade física.

 

Nos pés do estudante de Geografia Victor Serqueira, é o skate que sai do armário não só para o lazer. É com ele que o jovem, de 24 anos, completa os trajetos de sua casa, em Niterói, até a Estação das Barcas, e, de lá, para o trabalho, no Centro da Cidade. É o que ele chama de “integração skate-barcas”:

 

— Economizo cerca de R$ 70 por mês. É excelente, mas todos os dias ouço os motoristas me xingando. Os ônibus se jogam para cima de nós. Acho que muitos cariocas sequer sabem que skates, patins e bicicletas são permitidos nas ruas pela legislação. Quem tem motor se acha dono da rua. Falta informação.

 

É nesse ponto que a cidade precisa investir, segundo a vice-diretora do ITDP Brasil, Clarice Linke, que acompanhou o prêmio recebido pelo projeto Rio Capital da Bicicleta:

 

— Para ser mais sustentável, uma cidade precisa dar opção a seus habitantes. Transporte público de qualidade e infraestrutura para o transporte individual, coisas que se complementam. O prêmio dado à prefeitura diz respeito ao esforço que está começando. Mas não serve de nada se os erros não forem consertados. É preferível investir no compartilhamento da via, por exemplo, em vez de tirar parte da calçada. E falta conscientização.

 

Para enfrentar as ruas da cidade sobre duas rodas, até o subsecretário de Meio Ambiente do Rio de Janeiro, Altamirando Fernandes Moraes, responsável pela malha cicloviária da cidade, tem que enfrentar percalços. Convidado para pedalar com a repórter para testar ciclovias do município, ele encarou o trecho na Tijuca, Maracanã e Botafogo. Moraes passou por situações vivenciadas com frequência pelos ciclistas cariocas: recebeu buzinadas de motoristas apressados, desviou de árvores e pedestres e andou em meio aos carros em um trecho da cidade, sem ciclovia.

 

O circuito, na manhã de uma quinta-feira ensolarada, começou na Tijuca. Dali pedalamos até o Maracanã. Ele com uma bike dobrável e eu com minha velha de guerra, a Zuleika. Ainda há pouca gente usando a nova ciclovia, e em alguns trechos a opção no traçado foi pelo compartilhamento da calçada entre bicicletas e pedestres, o que não é o ideal, segundo especialistas. Além disso, o novo circuito é pequeno, em torno das estações de metrô. Desde 2009, há promessa de ligar a área à ciclovia do Grajaú, que não foi cumprida. Quem tenta pedalar entre os bairros fica no meio do caminho, ou opta pelas ruas.

 

Mas, durante nossa pedalada na Zona Norte, foram poucos os problemas e, de fato, a nova malha é um bom avanço na vida dos ciclistas. Já em Botafogo, o cenário foi outro. Na rua Visconde Silva, foi necessário desviar de árvores, carrinhos de bebês e pedestres que dividem uma micro calçada com as bikes. Foi preciso também atravessar para a outra calçada, na altura da Conde de Irajá, porque, de repente, a ciclovia some, e reaparece do outro lado. Outra promessa feita em 2009 pelo prefeito Eduardo Paes foi rever o traçado nesta área, mas nada ocorreu.

 

Na rua General Polidoro, o caminho ficou ainda mais difícil. Logo no início da rua, a ciclovia some, e só reaparece na altura da Real Grandeza. Na ausência de um local protegido para a bicicleta, o subsecretário teve que andar ao lado dos carros

 

— Aqui está muito ruim. Temos que refazer essa ciclovia logo — concluiu, explicando que há um novo projeto.

 

Durante a pedalada, o subsecretário admitiu a dificuldade de pedalar no dia a dia:

 

— Queria ir ao trabalho de bike, mas ali no Centro é perigoso, não dá.

 

Durante a produção da reportagem, aproveitei para usar mais minha bike. Acompanhei uma bicicletada da Massa Crítica, na Cinelândia, fiz atividades cotidianas. No último final de semana, tive o desgosto de de tentar ir à praia de carro. Mais de meia hora rodando nas ruas de Ipanema em busca de uma vaga. Eis que uma ciclista aponta uma placa: “um carro = 15 bikes”. Ela tem razão.


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