A regalia de prioridade pedestres garantida pelo Código Nacional de Trânsito não é só sistematicamente desrespeitada como invertida no tráfego já caótico da capital pernambucana. Nos bairros centrais e nos que concentram a classe média da cidade, desrespeitos a quem anda a pé são vistos cotidianamente: carros estacionados nas calçadas, veículos em cima da faixa, sinalização confusa e semáforos demorados. Em bairros periféricos, a situação é pior: a ausência de aparatos básicos para ordenamento do tráfego, como sinaleiras e até mesmo calçadas põe em risco os que precisam ou preferem se locomover a pé.
O Recife possui um guia específico de planejamento urbano que deveria nortear a construção dos espaços de pedestre da cidade, a chamada da Lei das Calçadas. Já no primeiro artigo do da norma, o básico: passeios públicos ou calçadas são de construção obrigatória na largura dos terrenos que estão localizados em logradouros com meio-fio e pavimentação. Ainda assim, em diversos lugares da cidade, como na Rua Alto do Eucalipto, no Vasco da Gama, nem mesmo esse trecho elementar da lei é cumprido.
“Nessa rua passam carros nas duas direções, tem carro estacionado no meio-fio, não tem lombada nem sinalização e, pra completar, não tem calçada. As pessoas precisam ficar desviando dos carros”, conta Severino Batista, morador da região. “Há quatro meses um idoso morreu atropelado por uma moto quando andava por aqui. Meu irmão também já se envolveu num acidente”, lembra. Mesmo na Rua Vasco da Gama, a principal do bairro, as calçadas são irregulares e a frequente carga e descarga de produtos nos mercados da área ocupa o espaço dos transeuntes, que com frequência são vistos caminhando pela rua.
Gilson Pinto, também morador do Alto do Eucalipto, reclama da insegurança sofrida pelos pedestres da área. “O problema maior é nos fins de semana, porque aumenta muito a quantidade de carros que passam por aqui. A pior coisa que vi foi uma criança que voltava do colégio e sofreu um acidente com um caminhão”, aponta. “Pode acontecer uma coisa séria dessas a qualquer momento. Poderíamos ter uma lombada ou sinalização aqui na rua, pelo menos para diminuir a velocidade dos carros”, sugere Gilson. Sua vizinha, Antônia Maria dos Santos, concorda que é necessário que alguma medida seja tomada. Ao abrir a porta da sua casa, ela já está na rua. “Seria bom se tivesse um espaço para os pedestres. É perigoso. Sempre levo as crianças daqui de casa pra escola, porque não gosto que elas andem sozinha nessa rua”. O marido de Antônia, de 63 anos, foi atropelado por uma moto enquanto saía de casa. “O levamos para a UPA, mas ele ainda está com um problema na clavícula por causa do acidente. Foi um susto muito grande. Os carros passam rápido por aqui, todo dia é esse medo”.
Na Bomba do Hemetério, a rua Júlio Lima, transversal da via principal do bairro, passa por uma situação similar. Lá não há área para os pedestres na maior parte de sua extensão. Irene Conceição mora em uma das poucas casas da rua que possuem um pequeno trecho de calçada. “Essa rua é atalho pra outros lugares, como o Alto do Pascoal e Alto Santa Terezinha, por isso passa muito carro por aqui. É caminhão, moto, bicicleta, carro e um monte de gente no mesmo lugar. Acho que a gente já está acostumado a desviar e andar assim, mas seria melhor se tivesse calçada também”. Ela conta que a rua sempre foi assim e que a mudança mais notável já ocorrida foi a quantidade crescente de carros estacionados no meio-fio nos últimos anos. “O problema mesmo é quando chove, porque escorre muita água já que a rua é ladeirada. Fica sujo e mais perigoso”.
O professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Geraldo Marinho aponta dois pontos fundamentais para a peleja dos pedestres nos centros urbanos. “Tradicionalmente, as áreas mais centrais da cidade recebem mais atenção do poder público por causa da maior circulação de pessoas. Mas um fator mais presente é de que a realidade na nossa cidade é muita injusta e há certos aspectos culturais presentes na cabeça dos gestores e dos próprios cidadãos que acarretam numa distribuição desigual de investimentos para a manutenção da cidade”.
Ele aponta que muitas áreas de bairros periféricos são formadas por assentamentos espontâneos e não-planejados e, por isso, há dificuldade de ordenamento urbano. “Recentemente andei por Água Fria e Dois Unidos e fiquei bastante assustado. As calçadas são tomadas dos pedestres em muitos pontos dos bairros. Desse jeito, o pedestre, que fica em último plano, está eternamente em risco. É possível ver que muitas calçadas ruas e avenidas principais dos bairros de subúrbio foram tomadas pelo comércio formal e informal, retirando a calada do pedestre. É um problema grave, cultural, educacional e que precisa ser discutido”. A cena se repete na maioria das ruas principais dos subúrbios da Zona Norte do Recife.
Responsabilidades
De acordo com a Lei das Calçadas (decreto nº 20.604, de agosto de 2004), a construção, recuperação e manutenção dos passeios e calçadas são de responsabilidade do município, do proprietário e do ocupante do imóvel. O Poder Público se responsabiliza somente das vias localizadas em frente a águas, como a orla de rios e lagoas; das em frente a imóveis públicos, como a sede da Prefeitura; e das calçadas de canteiros centrais e parques. Também é dever público cuidar das calçadas de rampas de cruzamentos e fazer reparos quando há alteração, nivelamento ou estragos causados pelo Município e seus delegados. Nos casos restantes, a responsabilidade cabe aos proprietários e ocupantes.
Ainda assim, há imóveis públicos que não seguem as regras do decreto. No bairro de Dois Unidos, na Rua João Cavalcanti Petribu, a Unidade de Saúde da Família 'Clube dos Delegados' não possui calçada ao seu redor. A Emlurb informou, em nota, que uma equipe da Empresa vai realizar levantamento para programar os reparos da calçada, mas não informou uma data precisa. Já na Bomba do Hemetério, a Escola Luiz Gonzaga, localizada na Rua Aurilândia, reproduz o padrão do restante da rua, e possui calçada estreita que leva os estudantes a transitarem pela rua. A Diretoria de Engenharia e Arquitetura da Secretaria de Educação do Recife afirmou que enviará, esta semana, um arquiteto à Escola para avaliar as condições da calçada e preparar projeto para aumentar a área de circulação de pedestres.
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