A recente retomada da bicicleta como meio de transporte urbano ainda não despertou para os milhares de ciclistas profissionais, carteiros, seguranças, entregadores de carnes, pães, galões de água, roupas limpas, jornais, frutas e toda sorte de mercadorias. São trabalhadores pouco valorizados, quase invisíveis, que se arriscam pelas ruas já bem cedo, às vezes antes do sol nascer.
Trata-se de um universo quase exclusivamente masculino, porque o trabalho exige força e resistência para galgar rampas com cargas de até cem quilos. Silenciosos, às vezes na contramão ou sobre as calçadas, esses homens lutam diariamente por espaço no trânsito pesado de cidades como São Paulo. Com suas máquinas de pedalar, os ciclistas entregadores evitam que as cidades sejam ocupadas por mais veículos motorizados. Reduzem ruído, fumaça e congestionamentos na área urbana.
Durante alguns dias saímos às ruas para ouvi-los, entender suas dificuldades e buscar respostas para o desafio de manter viva essa rede de transporte. As imagens e depoimentos falam por si. Começamos a série com o depoimento de um empresário que faz entregas de água no centro de São Paulo. Confira as reportagens nesta semana.
Doze galões de água mineral
Um dos ramos de atividade que mais faz uso da bicicleta para entregas (mesmo adotando também perua e moto, quando necessário) é o de distribuição de água mineral. "É muito ágil com a bicicleta. Posso colocar em cada veículo quatro ou até seis garrafões de 20 litros. Posso estender meu atendimento ao bairro todo, e ainda entrar por Higienópolis, Santa Ifigência, com muita facilidade de deslocamento", explica Orlando Costa Filho, diretor da distribuidora de água mineral Santa Mônica, sediada no bairro de Santa Cecília. Ele trabalha com três ou quatro entregadores, e dispõe sempre de uma bicicleta a mais, para o caso de alguma quebrar.
Se o esquema de distribuição é bom, o mesmo não se pode dizer da relação ciclista/patrão, que traz conflitos e dificuldades o tempo todo. Sentado diante de uma mesa lotada de papéis de controle do pessoal, Costa Filho apresenta seu maior problema: são carteiras de trabalho esquecidas ou abandonadas por ex-funcionários, xerox de vários documentos de identidade para organizar, lista com nomes dos entregadores e os locais onde se encontram... "Tem um custo alto, porque é difícil administrar esse serviço. Há muita informalidade, os que aparecem em geral são sem instrução nenhuma. E muitos consideram o trabalho temporário, um bico; então, há muita rotatividade. Alguns nem querem ser contratados, para poderem ficar com o seguro desemprego...Há também os que trabalham um dia, fazem o que tem de fazer, e em seguida perguntam se posso adiantar uns 50 reais...É complicado", desabafa.
Ele conta que raros são os empregadores preocupados em dar algum incentivo a esses trabalhadores: "Dou café da manhã, mas sei que poucos pagam sequer o almoço deles!". Há problemas também no trânsito: é comum provocarem confusões, que depois tenho que resolver: "Antes de liberá-los, oriento, peço para não saírem que nem loucos por aí... mas, basta cruzar a porta, e disparam com as bicicletas. Alguns esbarram nos carros, ou vão na contramão, sobem na calçada e até atropelam pessoas. Quando sei que são eles que provocaram, desconto do salário; se não tiveram culpa, fico tentando resolver as reclamações".
A situação fica até pior quando ganham por comissão, por entrega realizada. Segundo Costa Filho diz que prefere dar salário (paga algo em torno de 800 reais, por 8h de trabalho). Mas que comissão é algo comum, embora crie uma série de problemas - gera competição entre os entregadores, e muita confusão no trânsito. "Alguns dão duro até um período do dia; depois que avaliam ter ganho uma quantia razoável, largam mão de fazer as outras entregas. Não é um bom sistema, mesmo", opina.