Cidades imóveis

Leia a entrevista com Luiz Fernando Gambi, diretor do Secovi SP e Hamilton Leite, diretor de sustentabilidade da entidade

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Fonte: Revista 22  |  Autor: Amália Safatle e Leticia Freire  |  Postado em: 15 de outubro de 2012

A cidade é um sistema complexo e todo interligado

A cidade é um sistema complexo e interligado

créditos: Alexandre Pereira

 

O problema da mobilidade chegou a um ponto que começa a preocupar até mesmo o mercado imobiliário. “Antes, precisávamos crescer, mas, hoje, a cidade está ficando inviável. Aí começam os movimentos: quem pode vai embora. Não adianta eu crescer em uma cidade que se torna inviável de algum ponto de vista”, diz Luiz Fernando Gambi, diretor do Secovi em São Paulo.

 

Nesta entrevista à Revista 22 (edição 67), Gambi e Hamilton Leite, diretor de sustentabilidade da entidade, afirmam que o planejamento urbano vigente desfavorece a mobilidade e propõem que a sociedade civil organizada tome as rédeas na (re)construção de uma cidade melhor.

 

A questão que fica no ar é: o quanto as empresas estão dispostas a mudar o modelo que sempre favoreceu o crescimento dos próprios negócios?

 

Qual o interesse do Secovi no tema da mobilidade urbana?

Luiz Fernando Gambi: Imagina a cidade travando – você simplesmente não tem mais mercado para vender imóvel. O interesse é propor soluções para que o mercado continue existindo.

Hamilton Leite: E, antes de mais nada, qualquer empresário é morador. Nós circulamos pela rua. Então também queremos saber como é que a gente melhora a nossa cidade.

LFG: Toda a parte de planejamento da cidade sempre seguiu caminhos políticos – chega um prefeito, quer valorizar uma determinada região e consegue fazer o que interessa a ele, mas isso nem sempre faz parte de um planejamento. O Secovi quer propor soluções que contenham inteligência e bom planejamento.

 

Os planejamentos já existem, mas em geral ficam na gaveta, ou são modificados, desvirtuados. A questão está em propor soluções de planejamento ou de executar, fiscalizar, monitorar?

LFG: O plano diretor em vigor hoje em São Paulo, por exemplo, tem muita possibilidade de melhoria. Muitas coisas que estão ali não foram pensadas para melhorar a mobilidade.

HL: Na verdade, o plano arrasou a cidade, porque estabeleceu em duas vezes, duas vezes e meia o coeficiente de aproveitamento máximo, incluindo o pagamento de outorga onerosa. Vou explicar: a gente tem hoje, na cidade, um zoneamento que determina em cada região o coeficiente de aproveitamento básico, que é quantas vezes a área daquele terreno pode ser construída sem o pagamento de outorga e este coeficiente é igual a um na maior parte da cidade. Se o incorporador quiser construir até o limite do coeficiente máximo, ele tem de pagar uma contrapartida financeira para a prefeitura.

Exemplo: se o terreno tem mil metros, e coeficiente máximo de duas vezes, você pode ter um prédio de 2 mil metros quadrados de área computável. Pode-se chegar ao aproveitamento máximo, mas desde que se pague uma contrapartida financeira para a prefeitura. Com coeficientes tão baixos, não há adensamento.

Se o planejamento tivesse o objetivo de estimular a habitação nas áreas centrais e estimular subcentralidades nas áreas mais periféricas, não precisaria haver tanto deslocamento e esse movimento pendular entre as habitações de menor renda, que ficam nas bordas, e o emprego, que está nas áreas centrais. O ideal é que se tenha na mesma microrregião emprego, trabalho, lazer, moradia, educação, tudo ali, de preferência que se possa fazer a pé, e com níveis de renda mistos, coabitando o mesmo lugar. A prefeitura está estudando como equilibrar isso melhor.

 

Em uma cidade como São paulo, que já está, digamos, pronta, como se faz isso?

LFG: Se chegarmos a uma proposta boa e coerente, você pode demolir coisas velhas e colocar coisas novas com uma nova função. Viabilizar o que hoje é inviável. Exemplo: o velho problema de recuperar o Centro. Maravilha a ideia, mas, na prática, não se pode mexer em nada. Muitos imóveis de lá são tombados, e quando são tombados o entorno também é. Então, lá é muito difícil de produzir habitação que seja economicamente viável para o setor empresarial. Com isso, não se consegue contrapartida econômica para o valor investido.

HL: O retrofit [reforma de imóvel antigo, para melhorar e ampliar as possibilidades de uso], que seria um ótimo instrumento, tem problemas muito graves de aprovação. Se você pega um prédio muito antigo, que tem caixa de escada fora do padrão de segurança, na hora de reformar não se consegue aprovação dentro da legislação nova de segurança. E não dá para mexer na estrutura do prédio. Então, algumas coisas precisam ser revisadas no planejamento para estimular a ocupação de residências do Centro.

 

Quais são as principais propostas para a mobilidade que o Secovi defende? Os senhores falaram em subcentralidades e maior adensamento.

HL: Defendemos o adensamento em alguns pontos. Existe um estudo do Jaime Lerner, cuja proposta era melhorar a mobilidade de São Paulo do jeito que ela está. Ele mapeou os nós de transporte público metroferroviário, e em torno desses pontos propôs um adensamento misto de uso e de renda, além de uma interligação com uma promenade para pedestres. A solução tem que ser interligada: o adensamento com a capacidade de infraestrutura de transporte público. Ou seja, usos e ocupações em cima desses nós de transporte.

 

Como vocês estão pensando em soluções, por meio de que instrumentos?

HL: Há dois anos, temos feito um fórum urbanístico dentro da Convenção Secovi. No ano passado, o tema principal da convenção foi mobilidade. Este ano, teremos o fórum do dia 14 de setembro. E a gente tem vários fóruns de discussão. Hoje de manhã, por exemplo, eu estava participando de um grupo criado para entender e estudar a questão das vagas de estacionamento.

Temos em São Paulo uma legislação muito antiga que, basicamente, coloca um número mínimo de vagas por área construída. E, às vezes, esse número é maior que o necessário. Sem tantas vagas, o custo do imóvel poderia ser menor e a gente conseguiria ampliar o acesso da população aos imóveis.

 

Oferecer muitas vagas estimula o transporte individual.

HL: Essa é uma teoria: quanto mais vagas, mais se estimula a posse do automóvel. A gente está tentando entender isso com um pessoal qualificado, de embasamento teórico, que é o ITDP (Institute for Transportation and Development Policy). A vida deles é estudar mobilidade pelo mundo e propor alternativas de mobilidade para as cidades, eles inclusive oferecem projetos para as prefeituras.

 

Mas as construtoras vão aceitar isso? Pois a quantidade de vagas valoriza o imóvel e atende à demanda do comprador.

HL: Não necessariamente. Vou dar um exemplo da minha empresa (Casoi). Temos um projeto em Perdizes de um edifício comercial que, se fosse por nossa decisão, a gente teria construído um número de vagas metade do que a lei exige.

 

Então, por que é enfatizado, na propaganda de lançamento dos prédios, o número de vagas?

HL: Depende da situação. Em São Paulo há diversos casos. Onde não há um bom transporte público, o comprador tem necessidade de vagas. Por outro lado, há lugares em que a gente não precisaria de tantas vagas, como perto do Metrô.

Mas, por exemplo, um bairro como o Jardim Paulista: é bem servido tanto de metrô como ônibus, é um lugar central e muita coisa pode ser feita a pé, de táxi. No entanto, o número de vagas – 4, 5 vagas na garagem – é anunciado como um grande ativo nos lançamentos. E o público dali não precisa, usa o carro porque quer.

LFG: Porque é uma questão de status…

 

Aí é que está… então esse é o ponto?

HL: Há várias experiências no exterior em que o poder público não define o número mínimo, e, sim, o número máximo de vagas. Com isso, está forçando a barra para dificultar o cara ter um lugar para estacionar e induzi-lo a pensar: será que dá para eu me locomover de outro jeito? Em São Paulo, isso começará a acontecer na região da Operação Urbana Água Branca. E a tendência é essa: o poder público dificultar a posse e o uso do automóvel.

 

Mas isso tem implicações eleitorais, certo? A opinião pública dominante no brasil é conservadora em relação a esse tema e não quer abrir mão de seu conforto.

HL: Realmente, não é uma proposta bem vista pelas classes média e média alta.

LFG: Mas é uma questão de oferta também: havendo oferta farta de transporte público bom, as pessoas podem prescindir do carro.

 

Então primeiro precisa vir o transporte público bom?

LFG: O duro é isso: qual é o momento de quebrar (o círculo vicioso). Minha preocupação é que tem muito poder estabelecido. Se chegarmos com uma proposta bastante razoável de transporte público, a tendência da parte política é dar uma solução imediatista, dar mais do mesmo: encher as ruas de ônibus, passar linha de ônibus nas ruas residenciais, ou seja, vai infernizar ainda mais a cidade. Não é isso.

Transporte bom é transporte de trilho, porque aí você não compete com nada, tem uma via exclusiva. Metrô de superfície, metrô-bonde. O ideal é um BRT (Bus Rapid Transit), com ultrapassagem nas estações, para que não se gere fila e não atrapalhe o fluxo. Mas, se colocar somente nas mãos do poder público, tenho a impressão de que a solução seria apenas de curto prazo.

 

A São Paulo de hoje não tem o uso misto do espaço, não tem espaços públicos onde as pessoas convivam, não é uma cidade que convide as pessoas para as ruas. Ao contrário, é praticamente toda repartida em espaços particulares. esta situação deve ser atribuída a quem? Somente ao governo? À falta de planejamento que levasse tudo isso em conta? e quanto à responsabilidade das incorporadoras e construtoras?

LFG: Um complicador é que São Paulo cresceu muito rapidamente nas últimas décadas. Houve falta de visão de crescimento estruturado. A cidade foi crescendo com base em planos diretores que estão sempre atrasados. Não é que houve uma imensa ilegalidade e saiu todo mundo fazendo o que queria. Não, os planos diretores foram seguidos. Houve um ou outro caso de fraude ou erro, mas de modo geral a cidade cresceu conforme os planos. As empresas fazem o que podem fazer, e quem dita as normas são os municípios, os planos.


Mas esses planos não respondem aos interesses de crescimento do mercado imobiliário? O mercado não exerce uma pressão para que os governos criem planos que favoreçam esse crescimento? Até porque tem financiamento de campanha municipal que vem das empresas do setor.

HL: Vamos por partes. O que o mercado imobiliário faz? Ele atende uma demanda da população. Você quer morar em São Paulo? Ele te atende.

LFG: Não é o mercado que quer ofertar além da demanda. É a população que quer morar em São Paulo. Ela quer morar em Higienópolis, em Perdizes. Não adianta dizer: “Temos um projeto excelente em Campo Limpo”. Uma possibilidade seria a sociedade dizer: “São Paulo não pode crescer mais. Não pode mais construir, o que tem, tem”. Mas isso reflete imediatamente em preço: você restringe a oferta, aumenta o preço. Ou acontece coisa pior: se aqui não puder mais construir, as pessoas vão para as periferias, vão se instalar em lugares produzidos de forma ilegal, em beira de manancial. É melhor colocar as pessoas na casa do chapéu ou estimular o lugar que já tem infraestrutura, Metrô etc.?

 

Mas esse sistema mal planejado não acabou beneficiando o crescimento do mercado imobiliário?

LFG: Não. Esse último plano diretor, inclusive, foi contra o interesse do mercado imobiliário e acho que da cidade inteira. Não fez nada, simplesmente abaixou o padrão médio de aproveitamento para poder vender. Foi uma medida claramente arrecadatória.

Qual o interesse disso para o público? Nada. Uma coisa seria arrecadar mais para investir em transporte público, para uma cidade mais arborizada, boulevard de pedestre, mas isso não acontece. A decisão de morar em Campo Limpo nem seria um problema se a pessoa conseguisse chegar no centro de uma forma humana.

HL: Nova Jersey é um grande dormitório, mas o cidadão pega um transporte rápido e trabalha em Nova York. Tem um exemplo de que gosto muito, que é Cingapura. Desde 1965, as políticas habitacionais têm uma única diretriz: faz 50 anos que segue uma linha de raciocínio mestra. Se você é um cidadão de Cingapura, diz onde deseja morar e eles oferecem uma casa conforme a demanda. E, se você mostrar que está a um raio de distância a pé do trabalho, da escola e das amizades, você tem, para cada item, 10% de desconto no valor do imóvel para comprar. Visitei um condomínio que tinha 1.700 unidades à venda, com apartamentos de US$ 200 mil, e tinha somente 150 vagas na garagem. E nem todas seriam usadas, porque não há necessidade.

 

E como a gente pode criar uma política que resista às mudanças de mandato? Existe algum movimento sendo feito nesse sentido?

HL: Tem um pensamento para a sociedade civil assumir esse planejamento. Isso já está na boca do povo. Tem uma ação, que se chama Diálogos Urbanos, que reúne, além do Secovi, Instituto de Engenharia, Instituto de Arquitetura, Fecomercio, Associação Comercial, Movimento Nossa São Paulo, Defenda São Paulo, associações de bairro, muitas entidades, que estão pensando como melhorar tudo na cidade. Um dos temas é a mobilidade: como fazer para a sociedade civil tomar as rédeas do planejamento de longo prazo. E para que não fique na mão da política, que muda a cada quatro anos.

 

Essa situação é ruim para os negócios?

LFG: Tem que pensar que é ruim para a sociedade. Ainda existe uma cultura coronelista segundo a qual o prefeito é o dono da cidade. Tem que ter um organismo permanente que estabeleça as políticas de longo prazo que sejam de interesse da cidade.

HL: Na Convenção Secovi, virá aqui o prefeito de Maringá [Silvio Magalhães Barros], que tem uma experiência muito legal em relação a isso: a sociedade civil se organizou e montou um planejamento de longo prazo que independe da gestão do prefeito.

LFG: É por aí: precisamos criar mecanismos de participação de entidades da sociedade. Muitas cidades no mundo têm os “gerentes da cidade”, que extrapolam os mandatos dos prefeitos, mas é uma coisa que politicamente não pega aqui.

 

Como esse movimento que os senhores comentaram é abraçado pelo poder público?

LFG: A ideia é caminhar de forma independente, ou seja, tirar um pouquinho da mão do governo e colocar um pouquinho na mão da sociedade.

 

Mas precisa ter alguma legitimidade para que possa haver uma política pública, não?

HL: Acho que primeiramente vem o movimento da sociedade, o fortalecimento, para depois levar a alguma regulamentação.

LFG: A intenção do Secovi é que aqui a gente discuta assuntos de alto nível para que se transformem em propostas. Esse fórum urbanístico, por exemplo, tem essa finalidade. Não é esta postura: “Vamos fazer uma lei para que as construtoras possam construir mais”.

 

Mas a postura já foi assim.

LFG: Sim, em uma época em que a cidade precisava só crescer, precisava ocupar os espaços. No passado, tudo bem, quando precisávamos construir, dizia-se: “Vamos fazer a cidade crescer”. Mas hoje, a cidade está ficando inviável. Aí começam os movimentos: quem pode vai embora. Não é todo mundo que pode, mas quem vai ficar na cidade? Gente que precisa de empregos de faixa salarial mais baixa, indústria, serviços? Quem vai morar nesse caos?

 

Se continuar assim como está, que tipo de perda os senhores estimam para o setor?

LFG: A perda é da sociedade.

 

Sobre a perda da sociedade a gente já tem alguma informação. Queremos saber especificamente da perda econômica para o setor.

LFG: Imagine se eu só puder construir onde ninguém quer comprar, de que vai adiantar eu ser um construtor, um incorporador? Então, a sustentabilidade tem que estar por trás disso. Não adianta eu crescer em uma cidade que se torna inviável de algum ponto de vista. Que não oferece abastecimento, não oferece saneamento, não oferece transporte. Daqui a um tempo, São Paulo não terá mais onde captar água. Vai ter racionamento daqui a 30 anos?

HL: E esse argumento de que o adensamento da cidade interessa às empresas já passou do tempo. Hoje, as incorporadoras são nacionais. Se elas não podem construir em São Paulo, vão construir em Taubaté, em Sorocaba, em Mato Grosso.

 

E aí leva-se o mesmo modelo inadequado para lá.

LFG: Se olharmos para São Paulo, que está visivelmente ficando caótica, e propusermos soluções sustentáveis, viáveis e boas do ponto de vista de cidadania, isso vai virar um protótipo, uma semente que pode se espalhar pelas cidades brasileiras. Assim, cidades que ainda não estão neste patamar já podem adotar boas soluções de forma preventiva.

Hoje, os bons exemplos são apenas pontuais. É raro um prefeito que tenha postura cidadã, estadista. E, se não houver uma participação das empresas, ou uma organização de pessoas procurando soluções de longo prazo para cobrar e fiscalizar isso, não adianta nada… O perigo todo é fazer mais do mesmo quando se buscam as soluções. Por exemplo: se uma solução é adensar, adensar “um monte”, de qualquer jeito. Precisa adensar, mas desde que se abram áreas de convivência pública.

HL: Tem uma outra questão. Vou dar o exemplo daquele grupo que está pensando sobre a oferta de vagas. Se você reduzir o numero de vagas de um dia para o outro, isso vai impactar nas vagas das ruas, atrapalhando a fluidez. Ao impactar a fluidez, conclui-se que precisa ter uma rede de transporte público. Mas o Metrô está saturado, não dá conta. Então precisa ter alternativas ao Metrô. Veja como você mexe em um ponto e puxa outros.

 

Sim, porque a cidade é um sistema…

LFG: Exato. Todo interligado e muito complexo.


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