Mobilidade e acessibilidade desafiam cidades

Cada vez mais, entende-se a deficiência física não somente como uma condição estática: a deficiência - e o seu grau de gravidade - depende do ambiente em que se vive

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Victoria Broadus / Mobilize Brasil  |  Postado em: 16 de julho de 2012

Ônibus acessível

Ônibus acessível: treinamento também é fundamental

créditos: Agrale/Divulgação


A população do mundo chegou, no ano passado, à marca oficial de 7 bilhões de pessoas. Deste total, parte cada vez maior vive nas cidades: em 2010, esse contingente superou os 50% dos habitantes do planeta, e até 2050 prevê-se que mais de dois terços da população mundial será urbana (1).

No Brasil, a população urbana já representa 84,4% do total, de acordo com o Censo 2010.  Não é surpreendente, então, que questões de mobilidade e acessibilidade urbana estejam ganhando impulso à medida em que tentamos garantir o melhor funcionamento econômico e social das nossas cidades. 


Porém, ou portanto, os conceitos de mobilidade e acessibilidade que tanto discutimos ainda estão em processo de evolução. Hoje, a nossa compreensão sobre o tema é mais ampla do que era no começo do século, mas ainda não tão abrangente quanto deve chegar a ser. 


No passado, a noção de mobilidade era estreitamente ligada ao automóvel. Hoje, como resultado, os moradores de grande maioria das cidades brasileiras lidam diariamente com congestionamentos insuportáveis, que causam perda estimada de R$ 34 bilhões/ano (2). Só em São Paulo, o Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA) estima uma perda diária de R$ 11 milhões, contando tempo e combustível gasto em congestionamentos (3). Isso, sem falar no alto índice de mortes em vias urbanas do país. Depreendemos daí que a nossa mobilidade não está ligada ao uso do automóvel, mas que, pelo contrário, a dependência deste tipo de transporte só impede a mobilidade. Mesmo assim, São Paulo continua emplacando mais de mil novos autos por dia.

 

Importante notar que nossa necessidade de mobilidade, e portanto, de transporte - não importa o modo - provém de outras necessidades básicas: educação (escola); dinheiro (trabalho); comida (mercado); saúde (hospital). Se se pensa na melhor maneira de atender a essas necessidades, percebe-se que a opção de mobilidade individual, o carro, é apenas uma resposta - e a resposta menos eficiente - para atender a essa demanda. Também podemos investir em infraestrutura pedestre, cicloviária, e sistemas mais eficicazes e adequados de ônibus. Ao mesmo tempo, podemos desenvolver cidades mais acessíveis, onde a maior parte dos serviços esteja próximo às moradias e haja opções de transporte não-motorizado para nos locomovermos.

 

Acessibilidade e mobilidade para todos
O conceito de "acessibilidade para toda a população" abrange tipos diversos de pessoas, com capacidades e necessidades distintas - há os com deficiência visual ou auditiva, e também aqueles em cadeira de rodas. Portadores de alguma deficiência física representam de 10 a 12% da população mundial (cerca de 700 a 800 milhões). Destes, 80 a 90% vivem em países em desenvolvimento; dos que têm idade para trabalhar, 80 a 90% permanecem desempregados (4)

 

Na cidade de São Paulo, estima-se que existam 4,5 milhões de deficientes físicos (o número correto sairá no final de dezembro, com o resultado do Censo-Inclusão, lançado em março pela prefeitura). Dada sua condição, a grande maioria destas pessoas depende do transporte público para chegar aos locais de trabalho e lazer. Tudo isso  numa cidade repleta de barreiras físicas - sistêmicas (da infraestrutura) e atitudinais (geradas pelas pessoas). 

 

Nossa compreensão do que seja deficiência também vem evoluindo. Cada vez mais, entende-se a deficiência física não somente como uma condição estática: a deficiência - e o seu grau de gravidade -  depende do ambiente em que se vive.  Ou seja, se a cidade der condições a alguém em cadeira de rodas de sair de casa e retornar, em tempo razoável, de um trabalho digno, e após essa jornada ir ao cinema e achar um bom lugar para assistir ao filme,  é possível dizer que essa deficiência já não é tão grave. Da mesma forma, quando a cidade não é acessível, qualquer deficiência se torna mais séria, e multiplicam-se os danos econômicos e morais que afligem o deficiente: a pessoa com idade para trabalhar não consegue chegar no trabalho, e a criança deixa os estudos porque não há escola acessível. 

 

Dados comparativos

Relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta que no Brasil o portador de deficiência física tem, em média, apenas 2,8 anos de escolaridade, enquanto que o sem deficiência tem 3,7 anos. Entre os moradores urbanos, 62% dos indivíduos com deficiência têm nível de escolaridade fundamental completo, ao passo que 84% para pessoas sem deficiência. Segundo dados da Secretaria de Educação, em São Paulo há cerca de 13 mil alunos com deficiência, mas apenas 500 das 1.500 escolas da capital são acessíveis (e apenas seis são para estudantes com deficiência auditiva).  

 

Da mesma forma, o índice de desemprego é de 52% entre pessoas com deficiência (com idades entre 18 e 65 anos), versus 39% na população sem deficiências. Considere-se ainda que, entre os deficientes que têm emprego, uma maior percentagem deles (49%) classificam-se como profissionais autônomos, versus 36% entre pessoas sem deficiência. 

 

Com dados como estes, não surpreende que o Banco Mundial aponte pessoas com deficiência física como as que têm muito maior probabilidade de viverem em condições de pobreza extrema (5). Segundo a OMS, no Brasil 32% de pessoas com deficiência física vivem em condições de pobreza, contra 16% das pessoas sem deficiência; nas cidades brasileiras, 25% dos deficientes são pobres, segundo os mesmos critérios da OMS, contra 12% entre a população sem deficiência (6).

 

Por um lado, portanto, temos de lidar com o crescimento exponencial e descontrolado das nossas cidades, procurando instalar uma infraestrutura urbana resiliente e “sustentável”, ou de baixo carbono; ao mesmo tempo, temos a obrigação de mudar nosso modelo urbanístico para que seja mais inclusivo e humano. Ou seja, voltado a todos os cidadãos, e possibilitando a todos gozarem do direito de se locomover. 

Av Paulista, a mais acessível de SP

Av. Paulista, uma das mais acessíveis do país

créditos: Regina Rocha

Acessibilidade no transporte público de São Paulo
A Lei de Acessibilidade (decreto 5.296/04, de dezembro de 2004) estabeleceu normas gerais e critérios básicos para melhorar a acessibilidade no Brasil. A legislação é bastante ampla e abrangente, e tem incentivado as cidades a se tornarem mais acessíveis: por exemplo, a lei exige que todos os ônibus comprados depois de 2004 sejam adaptados para deficientes. Mas qual o estado real da acessibilidade no sistema de ônibus de São Paulo?


A frota de ônibus e microônibus da capital paulista é de mais de 15 mil veículos, dos quais 7.905 (ou 52,7%) são adaptados para usuários de cadeira de rodas. Segundo a SPTrans, desde 2009 todos os ônibus introduzidos ao sistema são adaptados para uso de deficientes - todos têm compartimento de passageiros rebaixado, sem degraus nas portas, com sistema de suspensão para facilitar o acesso, rampas (ou plataformas de elevação) junto às portas para o embarque de passageiros em cadeira de rodas; dentro, os ônibus têm espaços reservados, equipados com cintos de segurança para a cadeira.


A SPTrans informa que todas as 1.300 linhas de ônibus municipais contam com veículos adaptados; o intervalo varia de acordo com a demanda existente, e em média o tempo de embarque e desembarque para passageiros com deficiência é de 3 minutos. A cidade também dispõe, desde 1996, do serviço 'Atende', de transporte gratuito porta a porta para pessoas em cadeira de rodas, com uma frota de 372 vans acessíveis.


Avanços, frustrações e futuro possível
Para ouvir uma outra perspectiva sobre a acessibilidade do sistema de transporte público em São Paulo, entrevistei a deputada federal Mara Gabrilli ( PSDB) e ex-vereadora na Câmara Municipal de São Paulo (2007-2010). Há 17 anos, um acidente de carro deixou a deputada tetraplégica, e desde então ela luta por melhorar a qualidade de vida de deficientes físicos, inclusive fundando o Instituto Mara Gabrilli que trabalha para esse fim. Segundo a Mara, um avanço mensurável na cidade pode ser visto na avenida Paulista, que, segundo ela é considerada uma das vias mais acessíveis de toda America Latina. 



Não obstante, segundo a deputada, os números citados acima pela SPTrans podem ser enganosos. Além da escassez de ônibus adaptados nas ruas de São Paulo, Mara assinala que muitas vezes os funcionários das empresas de ônibus não são treinados para operar o equipamento dos veículos adaptados.

Usuários relatam que às vezes os motoristas nem param o ônibus para atender ao cadeirante. Já para pessoas com deficiências visuais ou auditivas, as frustrações são outras, por exemplo, a falta de aviso sonoro nos veículos, que não sinalizam para o cego a parada do ponto.


Tudo começa nas calçadas
Além disso, para a deputada, tudo realmente começa nas calçadas, pois se esse sistema básico de mobilidade tiver muitos obstáculos será quase impossível para um cadeirante chegar até um ponto de ônibus sozinho. Buscando melhorar a condição das calçadas paulistanas, enquanto vereadora paulistana, Mara Gabrilli conseguiu aprovar o Plano Emergencial de Calçadas (PEC), lei de sua autoria que visa à reforma das calçadas dentro das rotas estratégicas, onde estão concentrados os principais serviços da cidade. Após a execução do passeio público pela prefeitura, os responsáveis pelo imóvel tem a obrigação de mantê-lo em perfeito estado.

 

Para apoiar essa política, uma nova lei de calçadas entrou em vigor em São Paulo no começo de 2012 e fixou o valor da multa por descumprimento da legislação do PEC em R$ 300,00 por metro linear. Antes, a multa variava de R$ 102,02 a R$ 510,01 por àrea danificada. Agora, para uma calçada de 20 metros de extensão que tem um ponto danificado, a multa é de R$ 6.000,00. A nova lei também expandiu a largura mínima da calçada de 0,90 m a 1,20 m e estabeleceu que a responsabilidade pela construção, conservação e manutenção pela calçada cabe não somente ao proprietário, mas também ao usuário (locatário) do local. Mara Gabrilli, todavia, afirma que São Paulo poderia ser uma cidade muito mais inclusiva se a Lei do PEC fosse cumprida conforme originalmente pensada, o qual exigiria maior investimento da Prefeitura na reforma das calçadas, além de melhor fiscalização e planejamento.

Notas:
[1] Iclei: ONU - www.valor.com.br/sites/default/files/icleilacs_0.pdf)
[2] www.soeconomia.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1405&Itemid=44
[3] http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/transito/contexto1.html
[4] http://blogs.worldbank.org/transport/accessible-and-inclusive-transport-can-we-achieve-it
[5] World Bank, Disability and Poverty in Developing Countries
[6] Do relatório "Disability and Poverty in Developing Countries: A Snapshot from the World Health Survey", Abril 2011


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