Essa é a receita de Enrique Peñalosa, que foi prefeito de Bogotá entre 1998 e 2001 e que ajudou a recuperar várias áreas daquela cidade.
A capital da Colômbia criou mais de 300 quilômetros de ciclovias, transformou sua cracolândia num megaparque e adotou o Transmilênio, sistema de ônibus rápidos parecido com o de Curitiba.
Mas Peñalosa não acredita que Bogotá seja uma cidade modelo. "É uma cidade terrível, com problemas gravíssimos. Houve experimentos exitosos, mas ainda há muito a fazer", afirma.
ENRIQUE PEÑALOSA
Idade: 56
Formação: Formado em economia e história pela Duke University (EUA) e com doutorado em administração pública pela Universidade Paris 2
Carreira política: Prefeito de Bogotá de 1998 a 2001; tentou se reeleger em 2007 e em 2011
Ocupação atual: consultor nas áreas de trânsito e de urbanismo
Ele esteve no Brasil para participar do Fronteiras do Pensamento, série de palestras que acontece em Porto Alegre e São Paulo.
Abaixo, os principais trechos da entrevista que concedeu à Folha.
Que medidas adotadas em Bogotá poderiam ser usadas em São Paulo?
Enrique Peñalosa - Bogotá não é um exemplo de urbanismo. É uma cidade terrível, que tem problemas gravíssimos. Mas fizemos uma cidade um pouco mais para as pessoas e um pouco menos para os carros. Ampliamos as calçadas, criamos ciclovias protegidas. Ainda são poucas as pessoas que circulam com bicicletas em Bogotá, mas passamos de 0% para 5% da população pedalando.
O que mais precisa ser feito lá ou aqui?
Não pode ser normal que nossas crianças vivam ameaçadas de morte, que nós vivamos ameaçados de morte. Se dissermos a uma criança, cuidado com o carro, ela vai pular de horror, de medo. E com razão, porque milhares de crianças são mortas por carros todos os anos. Em Bogotá, os atropelamentos são a principal causa de mortes de menores de 14 anos.
É preciso criar muitos parques lineares, com ciclovias que atravessem a cidade.
O problema é que cada vez que propomos alguma coisa, alguém diz: não é possível. Eu sei que é difícil criar parques numa cidade cheia de construções como São Paulo. Mas digo que é possível. Apenas como um jogo, vamos imaginar que 50% de todas as vias da cidade sejam destinadas apenas a pedestres e bicicletas. Seria uma cidade muito linda.
Para onde iriam os carros?
O primeiro artigo de todas as constituições democráticas, inclusive a brasileira, diz que todos são iguais perante a lei. Se isso é verdade, um ônibus com cem passageiros tem direito a cem vezes mais espaço nas ruas que um carro com uma. Na minha opinião, não existe justificativa, democrática ou técnica, para que em uma via onde haja engarrafamento não seja construído um corredor de ônibus.
A maneira mais racional de utilizar o espaço viário, que é raro, é com ônibus. Então, por que não fazemos esses corredores? Por temor de pressão, de descontentamento. Mas homens públicos não devem ir atrás do título de miss simpatia.
As pessoas usam carros porque é mais confortável, dá liberdade e segurança.
Os carros são maravilhosos para passear, para sair à noite. Mas se todos resolvem ir de carro ao trabalho, a cidade entra em colapso. Quando falamos de cidade sem carros, ou com poucos carros, não estamos falando da ilusão de um hippie louco. Estamos falando de cidades que já existem e que são as mais exitosas do mundo. Como Nova York, Londres, Zurique.
Em Paris, a maioria dos prédios no centro nem têm estacionamentos. Paris eliminou nos últimos seis anos mais de 10 mil vagas de estacionamento nas ruas, para dar mais espaço para as bicicletas, por exemplo.
O Brasil vai na contramão, com o governo federal incentivando a compra de carros com a redução de impostos e o municipal exigindo garagem dos novos empreendimentos.
Isso é um erro. Não defendo que as pessoas não tenham carro. Defendo que repensem como usá-los. Não devemos proibir o carro, mas dificultar sua utilização e facilitar a vida daqueles que queiram viver sem ele.
Há várias maneiras de fazer isso. A mais fácil é a elevação do preço da gasolina. Outra é eliminar vagas nas ruas e cobrar mais nos estacionamentos. Há ainda pedágios urbanos, quando o motorista precisa pagar se quiser circular por determinadas áreas em determinados horários.
O poder público deve cobrar bastante por esse uso e usar o dinheiro para subsidiar um sistema de transporte eficiente, rápido, confortável, com ar-condicionado.
Quem usa transporte coletivo presta um serviço a toda a sociedade, por isso tem de ser premiado.
A exigência de garagens é outro equívoco. Em São Paulo, e em outras cidades de países em desenvolvimento, isso encarece muito o preço do metro quadrado. Em cidades mais avançadas, há um limite máximo de garagem, não mínimo. Isso reduz o preço do metro quadrado para a moradia e funciona como desincentivo ao uso de carros.
Críticos dizem que antes de restringir o uso de carros a cidade precisa oferecer transporte público de qualidade, o que não temos. Os trens e o Metrô, por exemplo, estão superlotados.
Não defendo trens ou metrô, cuja construção é muito cara. Defendo um bom sistema de ônibus. Geralmente, quem defende e pede metrô são as pessoas que andam de carro e tem alto poder aquisitivo. Não querem mais metrô para usá-lo. Querem que os outros usem e que deixem mais espaço para eles e seus carros na superfície.
Como convencer as pessoas que tem alto poder aquisitivo a usar transporte público? Muitos acham que ônibus é coisa para pobre.
A cidade avançada não é aquela em que os pobres andam de carro, mas aquela em que os ricos usam transporte público.
Por que os ricos usam metrô ou ônibus em Manhattan, em Londres? Os metrôs não são sensacionais. Em Nova York, no verão, são uma sauna, não há escadas rolantes, as estações são sujas e há ratos. Usam porque é a forma mais rápida e barata de ir de um lugar a outro. Há poucos lugares para estacionar em Nova York, e é muito caro. É assim que se convence.
Tudo funciona como na metáfora da cenoura e do porrete. Você tem de melhorar cada vez mais o transporte público (cenoura), para atrair passageiros, e dificultar o uso do carro (porrete).
São Paulo terá um novo prefeito em 2013. Que conselhos daria a ele?
Devemos pensar em cidades para os mais vulneráveis. Para as crianças, os idosos, os que se movimentos em cadeiras de rodas, para os mais pobres. Se a cidade for boa para eles, será também para os demais.
Se o novo prefeito resolver acabar com áreas de estacionamento para ampliar calçadas e ciclovias, pode haver muita reclamação. Vão dizer: onde vamos estacionar? O prefeito, então, pode responder: isso não é responsabilidade minha, é um problema privado. Eu também não digo onde você guarda sua roupa. O estacionamento não é um direito adquirido.
O recurso mais valioso que tem uma cidade é seu espaço viário. Nem que encontrássemos petróleo ou diamante no solo de São Paulo seria tão valioso. A questão é como dividimos esse espaço entre pedestres, bicicletas, ônibus e carros. É uma decisão política, não técnica.
Bogotá conseguiu acabar com uma zona de intenso consumo de drogas no centro. São Paulo não resolve o problema da cracolândia. O que fazer?
Em Bogotá, acabamos com uma zona que era cem vezes pior que a cracolândia, onde havia alto consumo de drogas e os piores índices de violência do planeta. Ficava a dois quarteirões do Palácio do Governo. Desapropriamos uma área de 23 hectares, demolimos mais de 600 construções e fizemos um parque. Junto, tivemos um amplo trabalho de reabilitação. Chegamos a ter mais de mil pessoas que eram moradores de rua e que foram reabilitadas e contratadas para trabalhar na prefeitura.
Houve também mais punições para pequenos delitos, não?
Sim. Estou convencido de que isso é essencial. Não digo punição para consumidores de drogas, mas para crimes. E punição muito severa para crimes com o uso de armas, porque é preciso ter uma distinção clara entre aquele que arromba um carro para furtá-lo e o que aborda um motorista com uma pistola.
Um dos direitos fundamentais que temos é o de viver sem medo. Em São Paulo, como em Bogotá, vivemos com medo.
A insegurança é também uma das causas da destruição da integração social de uma cidade. Quando há insegurança, os ricos têm muitos lugares para onde ir. Vão aos clubes, aos shoppings, vivem em condomínios cercados, longe dos demais. Não há convívio entre ricos e pobres.
A insegurança urbana é uma característica de toda América Latina, com algumas exceções, como Santiago, no Chile, que é seguríssima. Isso impede que desfrutemos as cidades.
Mas temos um sentimento de culpa na questão do direito penal. Achamos que não devemos punir severamente porque ainda há muita desigualdade, há populações muito carentes. Mas a violência é péssima para essa população também.
Até que ponto a infraestrutura urbana, como iluminação e conservação de praças e ruas, influencia na segurança dos cidadãos?
É preciso que haja ordem no espaço público. Isso já ajuda. Há muitas coisas que combatem a criminalidade. Os prédios têm que ser desenhados para que de dentro deles se veja o espaço público e que do público se veja o que acontece no espaço privado. A iluminação e a limpeza fazem com que as pessoas sintam que há autoridade. Pichação, sujeira, vendedores ilegais geram ambientes que são propícios para a insegurança e passam uma mensagem de um Estado debilitado, que estimula os delinquentes.
Há outra parte mais sofisticada desse pensamento que é a legitimidade. É a percepção das pessoas de que a sociedade é justa e não corrupta. Eu acredito que quando melhoramos as calçadas, isso traz igualdade. Quem anda pelas calçadas são as pessoas que usam transporte público. No caso das ciclovias, quando elas são protegidas (separadas fisicamente das vias usadas por carros), funcionam como um símbolo de que uma pessoa que anda em uma bicicleta de US$ 30 é igual a alguém que está num carro de US$ 30 mil.
Por isso também o sistema de ônibus é muito mais simbólico que o metrô. Vemos isso quando os carros de US$ 100 mil estão num engarrafamento e não podem se mover enquanto passa um ônibus a toda velocidade. Isso também constrói igualdade.
Quando há uma organização social mais igualitária, os cidadãos cumprem mais a lei. Eles denunciam mais quem viola as normas, pedem castigo para essas pessoas. Quando não há essa legitimidade, os cidadãos não cumprem as normas nem denunciam quem as violam.