A história do sistema de transporte coletivo da cidade de Los Angeles, na Califórnia, começa em 1873. Naquele ano, o governo local aprovou a instalação dos dois primeiros trilhos de ferro para bondes com tração animal, destinados ao transporte de passageiros. A decisão veio um ano após o início da operação, pela Companhia de Carris de Ferro, do bonde puxado por burros em São Paulo.
Em L.A., o primeiro empreendedor a solicitar o projeto acabou desistindo, mas outros apareceram no seu lugar. Surgiram várias companhias ferroviárias e, em 1883, a primeira linha destinada exclusivamente ao transporte coletivo entrou em operação.
Por volta de 1897, os cavalos e burros que puxavam os bondes de Los Angeles perderam a vez para a eletrificação. O sistema se consolidou em 1911 com a fusão das oito operadoras de bondes da cidade, que originou a grande Pacific Electric Railway Company. No seu auge, em 1924, a Pacific Electric percorria mais de 1.000 km de trilhos da futura megalópole.
O interesse do magnata Henry Huntington, dono da Pacific Electric, era atrair cada vez mais pessoas para seus empreendimentos imobiliários nos novos subúrbios que iam surgindo. Com esse objetivo em mente, Huntington também comprou e expandiu o primeiro sistema ferroviário elétrico interurbano, que ligava Los Angeles a Pasadena. Quando foi vendido para a Southern Pacific Railroad, em 1910, esse era o maior sistema de transporte elétrico do mundo, ligando 50 comunidades dentro de quatro condados do sul da Califórnia no sistema interurbano “Red Cars”. Depois da transação, Huntington ficou apenas com os bondes locais, os “Yellow Cars”.
A história não parou aí. Em 1925, o promissor sistema de bondes e trens interurbanos foi complementado com a inauguração do primeiro metrô, o Pacific Electric Subway, com um 1,5 km de trilhos sob o solo.
Do bonde ao caos automobilístico
Com tanta evolução no transporte público, é difícil de acreditar que Los Angeles seja hoje a cidade americana mais notória pelo congestionamento. Acontece que, mesmo com uma rede abrangente de transporte coletivo, a chegada do carro foi responsável por desfazer subitamente este caminho de progresso e sustentabilidade urbana. O que se viu foi o desencadear de um processo de crescimento desordenado que, agora, a cidade agora luta para reverter.
O declínio do bonde tem diversas explicações. Para começar, a seca de 1924 causou uma grande onda de apagões na região; toda vez que a eletricidade era cortada, o bonde parava e os passageiros ficavam revoltados. Com isso, a demanda pelo automóvel cresceu. Para aumentar ainda mais essa procura pelo transporte individual, na segunda metade dos anos 20, os subúrbios cresceram rapidamente, enquanto que o serviço de bonde não conseguiu manter o ritmo, e perdeu qualidade.
Com 166 mil carros já trafegando nas ruas em meados dos anos 20, armou-se um conflito entre automóveis e bondes. A disputa nos cruzamentos da cidade provocava numerosos acidentes. Aumentaram os atrasos e congestionamentos e, para enfrentar longos engarrafamentos, os bancos de madeira dos bondes pareciam cada vez mais desconfortáveis, se comparados aos estofados do carro. O resultado não podia ser outro: após 1925, os itinerários cobertos pelo bonde foram diminuindo.
Durante a Grande Depressão dos anos 30, o serviço de bonde de Los Angeles sofreu por falta de investimentos e, após a Segunda Guerra Mundial, o espólio de Huntington vendeu o sistema local de Yellow Cars à companhia National City Lines, sediada em Chicago. Não por acaso, os maiores investidores na National City Lines incluíam o gigante da indústria do automóvel, a General Motors, além de empresas poderosas de petróleo e borracha, como a Phillips Petroleum e a Firestone Tire & Rubber.
Em breve, a National City Lines se apropriaria de nada menos do que 46 sistemas de transporte nas regiões do oeste e meio-oeste do país. Destruiu os bondes sistematicamente, colocando ônibus em seu lugar. Como reação, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos deu entrada num processo “anti-monopólio” contra a companhia, mas, antes que fosse julgado, o consórcio de grandes investidores abandonou a corporação, e a National City Lines tornou-se nada mais que um nome. Quando o caso foi à Justiça, em 1949, algumas companhias do consórcio tomaram multas irrisórias de 5 mil dólares.
Na prática, o carro e o ônibus já tinham chegado a dominar o transporte no país. Em 1953, a Pacific Electric vendeu os “Red Cars” interurbanos para uma companhia privada de ônibus que, cinco anos depois, foi comprada pela Los Angeles Metropolitan Transit Authority. Os últimos carrinhos de bonde foram para o cemitério de transportes no começo dos anos 60.
O engenheiro de transporte Dario Hidalgo, diretor da Embarq, o centro de transporte sustentável do World Resources Institute, diz que a conspiração das companhias da National City Lines contra os bondes e trens elétricos está bem documentada e fundamentada. Porém, o especialista é de opinião que, embora o consórcio tenha acelerado a destruição do bonde em Los Angeles e em outras cidades americanas, ele não teve toda a culpa no processo.
Hidalgo recorda que, à época, as políticas públicas em cidades como Los Angeles promoviam a compra de casas nos subúrbios com ofertas de hipotecas de longo prazo e descontáveis do imposto. Essa política, junto com a construção do sistema nacional de estradas interestaduais, argumenta o engenheiro, criou um ambiente amigável para o carro, fomentando cidades espalhadas e de baixa densidade. (Em comparação, na Europa, as políticas públicas das grandes cidades estimularam um sistema de transporte mais diversificado e um crescimento mais compacto, mantendo os centros das cidades bem movimentados e de uso misto.)
Como resultado, o automóvel rapidamente virou símbolo de status e qualidade de vida, enquanto o serviço dos bondes ganhou a reputação de ser lerdo e não confiável. Los Angeles, no entanto, cresceu de forma desordenada, com construções por todos os lados, o que reforçou ainda mais a dependência do automóvel.
Dentro de poucos anos, esse estilo de vida mostrou-se desastroso. O carro gerou congestionamento nas ruas, baixou a qualidade de vida na cidade e causou perdas enormes de tempo (e dinheiro). Continua a provocar centenas de mortes no trânsito todo ano, e as emissões de gases de efeito estufa atingem igualmente a todos os moradores de Los Angeles.
Reversão do modelo do carro
Embora seja complexa a operação para reverter tudo que foi feito ao longo do século passado, a cidade americana vem dando mostras de que está lutando para isso. Há investimento no transporte coletivo, por exemplo para implantação do sistema de corredores de ônibus (BRT), e no incremento urbanístico de polos de uso misto, com a integração dos planos de uso de solo e transporte, ao estilo europeu, explica Hidalgo.
Para o especialista da Embarq, a maior lição que as cidades brasileiras podem tirar dessa virada no modelo de Los Angeles é a importância da preservação de quaisquer tipos de transporte coletivo de boa qualidade - seja metrô, trem, bonde, ou especialmente BRT. Ele aponta esta saída como "forma de manter uma maior qualidade de vida e a competitividade da cidade, protegendo ao mesmo tempo o meio ambiente".
Para ele, um bom modelo são também as cidades europeias e, no Brasil, a cidade de Curitiba, que "mostra como o BRT viabiliza esse tipo de conexão entre transporte e uso de solo", destaca Hidalgo, ressaltando porém que o BRT "completo" vai muito além das simples vias exclusivas de ônibus que já existem em muitas cidades brasileiras.
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