As calçadas descalças

Deixa que fica para ver como é que está

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Fonte: Revista AU - Arquitetura e Urbanismo  |  Autor: Sergio Teperman*  |  Postado em: 23 de maio de 2012

"No Brasil, não atravessamos - arriscamos"

créditos: Osvaldo Pavanelli

Agora que a lei Cidade Limpa surpreendentemente pegou em São Paulo e imagina-se (ou ameaça-se) que pegue em outras cidades, surge uma proposta: que tal aproveitar a idéia e limpá-las realmente? Não imagino que do ponto de vista urbanístico, haja algo de mais deprimente - e perigoso - para a população do que a falta de qualidade das calçadas. A questão é tão evidente que parece impensável a deterioração, que chega ao ponto do desaparecimento das calçadas das cidades brasileiras.

 

E o seu pior exemplo é justamente a cidade mais rica. Há uns 20 anos havia uma seção na Folha de S. Paulo que entrevistava e fotografava habitantes contando o que havia de bom ou de ruim na cidade. Fui visitado por um repórter e um fotógrafo e desci com eles para mostrar o horror da calçada ao lado de nosso prédio. O fotógrafo foi recuar para tirar uma foto minha ao lado de uma cratera e pam! Caiu na cratera que estava atrás, danificando a sua máquina. A Folha deve ter achado o exemplo muito instrutivo, apesar do prejuízo.

 

Além de totalmente danificadas, irregulares, com desníveis e revestidas com materiais diferentes, as calçadas paulistanas são estreitas e ocupadas de maneira absolutamente desordenada por sinais de trânsito, postes, lixeiras, pontos de ônibus, luminárias, anúncios, bancas de jornal, orelhões, bueiros destampados (tampa roubada) e pela praga dos ambulantes. Para essa limpeza, seria ideal que toda noite passasse um enorme e potente caminhão de lixo que recolhesse e triturasse todos esses itens.

 

Certa noite, com o carro parado no semáforo na esquina das avenidas Rebouças e Faria Lima, em São Paulo, eu vi (juro!) um sujeito que estava caminhando na calçada simplesmente desaparecer dentro de uma enorme escavação (trabalho de concessionária) ao virar a esquina. Como nas famosas pegadinhas, não deu para reprimir o nosso riso.

 

Por que chegamos a uma situação tão calamitosa? Há dezenas de razões, mas podemos citar algumas:

 

1) A falta de planejamento e a irresponsabilidade das concessionárias de serviços públicos que arrebentam diariamente ruas e calçadas.

Como se pensa sempre no imediatismo do mais barato, a "paisagem" urbana é atulhada de postes e fios elétricos, obrigando a cortes de árvores ou de energia.

Lucio Costa, no memorial descritivo para o projeto de Brasília, escreveu, "a rede elétrica será enterrada, como em toda cidade civilizada". Em boa parte do Rio de Janeiro é assim.

 

2) A situação absurda estabelecida pela lei, segundo a qual cabe a cada um cuidar da calçada em frente ao seu imóvel, eximindo a responsabilidade da prefeitura.

As autoridades agindo assim pensam que estamos na Suíça, onde os carros são bem sujos por dentro, cheios de papéis do excelente chocolate nacional, mas, em compensação, as ruas são limpíssimas, porque todo mundo deixa os papéis no carro.

Na democrática Cingapura, chiclete no chão é multa de 500 dólares (é proibido importar) e prisão na reincidência, mas você pode, se fizer muita questão, voar até a Austrália para dar uma mascada. Fico pensando qual seria a pena para a sujeira do graffiti.

 

3) As gracinhas de cada prefeito que resolve inventar desenhos pavorosos para enfeitar os pisos, e outras cem razões.

 

Aí chegamos a um mistério: por que será que o mosaico português, que todos reconhecemos que é lindo (lembrando Tom Jobim, é muito bom, mas é uma m... ou é uma m... mas é muito bom), se mantém certinho e bem conservado no Rio de Janeiro e no país inteiro de Portugal? E será que nesses dois estranhos locais do mundo as mulheres andam sem saltos altos? Como dizem a bossa nova e Oscar Niemeyer, os desenhos das calçadas de Copacabana lembram as curvas da mulher carioca. Parabéns, mesmo com salto alto. E engraçado, que coincidência, ora pois pois, os pisos de mosaico português ficam exatamente em Portugal!

 

Existe uma "quase" norma internacional que manda usar placas de concreto removíveis, de fácil substituição para acesso a instalações, sem danificar o piso. Mas o mundo está errado, o certo é como fazemos nós.

 

É verdade que, durante séculos, a bagunça das calçadas foi universal e isso se reflete nos nomes pelos quais as chamamos em diversas línguas, até quando em um ou outro idioma eles deveriam ser ao menos parecidos: é acera em espanhol, marciapiedi em italiano, sidewalk em americano, pavement em inglês e, naturalmente, trottoir em francês. Em alemão, não lembro mais, mas deve ser algo como hundscheiseachtungführersauerkrautmitkartofellnschumacherstrasse que significa "piso".

 

Mas todos chegam à mesma conclusão: placas de concreto. Naturalmente, há os casos especiais de áreas residenciais, regiões de comércio, praças (e aí os desenhos são obras de arte), especialmente em áreas grandes, no Canadá, Japão, Estados Unidos e em especial nas antigas praças italianas, onde os desenhos lembram a antiga preocupação com a beleza - e mesmo com a praticidade, porque duram até hoje - dos espaços urbanos.

 

Os que estiveram na maravilhosa cidade litorânea de Dubrovnik, na Iugoslováquia (com a bagunça do nacionalismo, a gente não sabe mais como esses países se chamam), podem se lembrar de um espaço urbano total integrado pelo piso, com grandes placas de pedra polida, inviável hoje, mas é o mais bonito que conheço.

 

Nas cidades desenvolvidas, ao caminhar as pessoas olham para a frente, os arquitetos para os edifícios e os paisagistas para o chão. Aqui no Brasil, devemos ser todos paisagistas porque, se não formos, é fratura na certa.

 

Conta a história que a razão pela qual as mulheres caminhavam do lado interno da calçada é que na Inglaterra, antigamente, procediam assim para evitar serem arrebatadas e raptadas pelos cavaleiros que passavam rente à calçada e na "mão inglesa". Do jeito que anda o mercado, acredito que se fosse hoje, todas estariam caminhando quase em cima da guia.

 

Diz-se que a forma mais segura de se atravessar a rua em Nova York é estar acompanhado de uma criança; em Paris, de uma mulher bonita, e, em Berlim, de um cachorro. No Brasil, não atravessamos - arriscamos.

 

É verdade que nos países gelados do norte você arrisca freqüentemente cair escorregando no gelo sobre o piso (escapei algumas vezes, caí várias outras), mas mesmo assim eles colocam terra e sal para reduzir o problema. Aqui temos ainda as reformas diárias, em que o piso de cimento não secou e nos tornamos todos celebridades, imprimindo as solas dos sapatos nas calçadas da fama ou da lama.

 

O que fazer? Consertar calçadas não é uma questão urbana de tanto impacto visual para os políticos que pensam que administram nossas cidades. O método mais usado é o tradicional "deixa que fica para ver como é que está". No entanto, sem dúvida, é uma lei que deveria ser alterada, para que as prefeituras fizessem o serviço - cobrando, se necessário - e proporcionassem calçadas unificadas e facilmente mexíveis, para usar um termo culto.

 

Da forma como estão as coisas, devemos também aqui usar outra palavra tradicional para calçadas: "o passeio". Mas o passeio não é dos cidadãos, é dos cachorros. Aos cidadãos resta se desviarem dos buracos e tomarem cuidado para não pisarem nas lembrancinhas que as madames e madamos donos de cachorros vão deixando pelas calçadas. O consolo é que, pelo menos nesse item, somos iguais a Paris.

* Publicado originalmente na revista AU - Arquitetura e Urbanismo (Pini)

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