Para um observador desavisado o Brasil é ciclo-tímico. Há alguns meses a conversa na imprensa era a ligação entre Rio e São Paulo por trem de alta velocidade, do tipo do francês TGV – Train à Grande Vitesse – ou de outros que percorrem seus trajetos a velocidades de cruzeiro em torno de 250 km/h. Chegamos a ter data de licitação e consórcios de empresas interessadas. A Justiça Federal suspendeu a licitação atendendo a ação impetrada por representantes de empresas rodoviárias. O trem bala caboclo, o TAV, está voltando a circular, por enquanto, nas páginas dos jornais. Decisão da 2ª instância da justiça permitiu que a contenda licitatória pudesse ocorrer. Do ponto de vista legal tudo ok.
Como engenheiro formado há quase 50 anos, assisti a opção rodoviária feita pelo Brasil, talvez a mais acertada naqueles idos anos 50 do século XX, quando se dizia que governar é abrir estradas. Não sei. Li e ouvi de mestres e colegas mais velhos o heroísmo de empreendedores como Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, e de engenheiros como o notável Paulo de Frontin que vencendo enormes dificuldades implantaram estradas de ferro que galgando a Serra do Mar levaram desenvolvimento e economia ao nosso interior, com técnica aprimorada. A minha primeira viagem pela notável ferrovia Paranaguá – Curitiba, construída pela nossa engenharia ainda no século XIX, me tirou o fôlego, pois dá ao passageiro a sensação de que o comboio avança pelo ar. Consta que reconhecidos engenheiros ferroviários europeus consideraram seu traçado impossível de ser concretizado.
Assisti constrangido e triste a chamada supressão dos ramais ferroviários antieconômicos, que decretaram a morte de tantas pequenas comunidades do interior. Um crime perpetrado pela visão curta de quem decide vendo apenas as planilhas de custos e receitas do serviço, mas sem olhar a economia como um todo.
Acompanho agora com preocupação as providências para a implantação do trem bala ligando as cidades do Rio de Janeiro a São Paulo, com uma única escala em Campinas. Uma opção ferroviária para atender apenas a passageiros e não a cargas, a um custo inicial previsto de 33 bilhões de reais, mas que pela tradição brasileira custará pelo menos o triplo.
Em uma situação como essa, o instinto do profissional engenheiro é o de perguntar se a solução proposta é a mais adequada, se atende às maiores necessidades das regiões envolvidas se analisarmos os benefícios em presença dos custos. Essa maneira de pensar é a da engenharia, apesar de nos últimos tempos nos procurarem relegar a meros tocadores de obras e a administradores de chão de fábrica. Até os projetos e estudos são agora muitas vezes comprados fora.
Como sempre, a pressa e a necessidade política de as obras terem a marca deste ou daquele governo impõem ritmos que nem sempre são os mais adequados para os estudos, projetos e execução de obras. No momento a Copa e as Olimpíadas justificam correrias e desatinos.
Alguém já deve estar perguntando: uma ligação ferroviária de alto desempenho entre as duas maiores regiões metropolitanas do país não é aconselhável? A óbvia resposta é SIM. Mas observadas certas condicionantes. Vamos a algumas:
1- Trens de alta velocidade, como o mostrado pela imprensa naquela época, atendem apenas a demanda de passageiros e não a de carga;
2- A região a ser atravessada pelas linhas do nosso TGV caboclo é uma das mais produtivas do país, e o transporte, como, aliás, no restante do território, é primordialmente rodoviário e, portanto, mais caro;
3- Construir ferrovias e até mesmo material rodante não é um assunto tão novo para a nossa engenharia ferroviária, apesar do pouco caso a que ela está relegada há décadas.
4- Dirão alguns, que hoje a coisa é diferente. “Os trens e seus controles estão no domínio da alta tecnologia”, como se tecnologia fosse coisa para prejudicar e como se seu acesso fosse permitido apenas para os gênios do hemisfério norte. “Complexo de vira-latas”, diria Nelson Rodrigues.
5- Cometemos o mesmo engano no caso da TV digital, que poderia ter proporcionado um incentivo à pesquisa tecnológica nas universidades e centros de pesquisa. Compramos um pacote e até hoje dele não tiramos tudo o que o sistema pode dar. Sempre que adquirimos esses embrulhos, junto vem uma caixinha com a etiqueta “Transferência de Tecnologia”. Que é, regra geral, um engodo.
6- Se não ficarmos atentos, e aos engenheiros é que cabe a maior responsabilidade por entenderem de trens, de infraestrutura e de tecnologia, repetir-se-á a mesma solução simples, rápida, cara e altamente prejudicial aos interesses nacionais.
Vou fechar aqui a minha opinião, não por julgá-la a melhor, mas para despertar entre os que a lerem, principalmente aos colegas engenheiros, reflexões e visão da necessidade de participarmos, como classe, dos assuntos que nos cabem. Ferrovias são imprescindíveis, principalmente se articuladas com os outros modais.
As novas ferrovias ou as que venham a ser remodeladas devem ter qualidade para suportar composições que trafeguem com velocidades de até 150 km/h. Paulatinamente, quando tivermos uma rede razoável, iremos ligar os centros urbanos pelos confortáveis trens de alta velocidade, mas nascidos da nossa inteligência.
A tecnologia necessária, poderemos desenvolver sem nenhuma dúvida. Se houver necessidade de imprimirmos maior velocidade contratemos fora técnicos reconhecidos como detentores desses saberes específicos e os aloquemos nos nossos centros de pesquisa. Não há demérito nesse procedimento, a prática é corrente no mundo.
Há muito mais o que dizer sobre o assunto.
Fiquemos atentos, ciclotimia é assim, passada a fase de recolhimento virá uma de exaltação. O trem bala recomeçará a correr pelos gabinetes, entrará pelos jornais e pelo noticiário das tvs, que mostrarão as maravilhas dos trens europeus, aguçando o desejo dos menos informados. Alguns interesses não explícitos se encarregarão da propaganda.
Ainda há tempo para os engenheiros, por meio das suas entidades, discutirem o assunto.
Já se ouve o apito do trem, ele está chegando, será que é esse que nos vai levar aonde queremos chegar?
Vamos discutir.
Email: danilosiliborges@gmail.com
Leia o outro texto do autor no Portal:
Calçadas de Brasília
Conheça o Blog Conversa de Engenheiro