Brasília insiste no rodoviarismo: pedestres e ciclistas são desprezados

"O que era ruim ficou ainda pior. Mais pistas, túneis e viadutos representam mais obstáculos e maior risco para quem está a pé e de bicicleta"

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Fonte: Mobilize | Brasília para Pessoas  |  Autor: Uirá Lourenço/Brasília para Pessoas  |  Postado em: 21 de outubro de 2019

Final do Eixão Norte, outubro/2019

Eixão Norte, out/2019: nem sinal de calçadas ou ciclovias

créditos: Uirá Lourenço

Acompanho a situação de imobilidade e insegurança em Brasília há alguns anos. O trecho final da Asa Norte sempre foi bem hostil aos "sem-carro". Em 2016, no governo Rollemberg, as obras do projeto Trevo de Triagem Norte (TTN) foram retomadas e a preocupação aumentou. Não por acaso a obra ficou sendo conhecida como Terrível Trevo Norte.

 

Passei recentemente de bicicleta pela região e constatei: o que era ruim ficou ainda pior. Mais pistas, túneis e viadutos representam mais obstáculos e maior risco para quem está a pé e de bicicleta. O governo se esqueceu dos pedestres e ciclistas e descumpriu as leis da mobilidade: não existem calçadas, ciclovias nem pontos seguros de travessia. Para agravar a situação, o fluxo de carros é intenso e veloz, com limite de 80 km/h.

 

 

Alto risco para pedestres e ciclistas: alta velocidade e ausência de ponto de travessia



A cena lamentável se repete todo dia no final do Eixão Norte: pedestres e ciclistas correm entre os carros para chegarem vivos ao outro lado. Infelizmente, o foco das ações governamentais continua o mesmo: a busca da tão sonhada e inalcançável fluidez automotiva, em detrimento da segurança no trânsito. A contradição é grande entre os recursos para os motoristas (as obras viárias na região norte têm custo de R$ 207 milhões) e o abandono aos pedestres.

O estudo Segurança de Pedestres no Eixo Rodoviário do Departamento de Estradas de Rodagem (DER-DF) já apontava em 2007 as ações necessárias, incluindo: construção de mais pontos de travessia, requalificação e manutenção das passagens subterrâneas existentes e intensificação do policiamento. Entre as ações prioritárias estava a construção de mais passagens: “Novas passagens deverão ser construídas na Asa Norte, cada uma com localização prevista entre duas passagens consecutivas existentes”. Passados mais de 10 anos, nada mudou e os pedestres sofrem com o abandono e a insegurança nas passagens (vídeo deste ano mostra a triste realidade).

E o que dizer do transporte coletivo? A humilhação diária continua: pontos de ônibus em total abandono, sem informações sobre linhas e horários. A ineficiência no transporte é bem clara: quase todo o espaço viário é ocupado pelos carros e os ônibus superlotados (com pessoas espremidas, “transbordando”) sem qualquer prioridade na via (corredor exclusivo).

 

 

TTN: ônibus superlotados, sem corredor exclusivo e pontos de embarque abandonados


 

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Saída Norte: TTN e ligação Torto-Colorado


Aproveitei o pedal até Planaltina para conferir as condições da BR-020. Além do Terrível Trevo no final do Eixão, toda a região norte passa por obras com foco na fluidez motorizada. Os inúmeros anúncios do GDF (nos outdoors, ônibus, jornais e redes sociais) destacam as obras da Saída Norte como se fossem a solução para a mobilidade. O foco é sempre a fluidez motorizada: “o trânsito voltou a fluir”, “as novidades devem melhorar o fluxo em até 50%”, “com mais três novas faixas para quem sobe e três novas faixas para quem desce, o GDF acabou com os congestionamentos no local”. Em vídeo divulgado no facebook, o secretário de mobilidade comemora a retirada de quebra-molas na rodovia.

Enquanto o governo celebra a eliminação da lombada, os pedestres continuam em alto risco, correndo no meio dos carros em alta velocidade. A maioria dos pontos de ônibus não possui qualquer ponto seguro de travessia próximo. Poucas passarelas estão em construção, em quantidade insuficiente para a demanda por travessia segura.

 

 
 
     

Pedestres em alto risco na BR-020: sem calçadas e pontos de travessia; passarelas em quantidade insuficiente e inacessíveis



Não é à toa que a BR-020 é a rodovia federal mais perigosa do país, segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT). O estudo da CNT revela que a BR-020 é a rodovia federal com mais “acidentes” e mortes por quilômetro em todo o país: em 2018, ocorreram 232 colisões e atropelamentos e 15 mortes na BR-020.

 

Com mais pistas e viadutos fica ainda mais difícil e perigoso caminhar, pedalar e acessar o transporte público na rodovia. O excesso de velocidade é outra marca registrada. No trajeto, muitos carros e caminhões passavam bem próximos e a insegurança era grande, especialmente nos trechos sem acostamento. Por enquanto, só um trecho curto próximo ao Colorado recebeu ciclovia. E a ciclovia construída não foge à triste regra no DF: trata-se de um fragmento, sem conexão com outros caminhos. Ou seja, a alegria do ciclista dura pouco e a travessia da ponte do Bragueto continua sendo de alto risco (vídeo de 2018 mostra o sufoco na travessia da ponte).



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Amsterdã: Linhas Verdes de verdade (set/2018)

 

Há algumas décadas as cidades modernas notaram os malefícios causados pelo planejamento voltado para o uso do carro. Pistas e estacionamentos requerem grande espaço urbano e a grande frota em circulação causa congestionamentos, poluição, estresse e sedentarismo. As cidades holandesas demonstram que é possível reverter o caos provocado pelo avanço do automóvel.

Ao ver Amsterdã hoje com diversas linhas de tram (bonde elétrico) e milhares de bicicletas nas ruas e nos estacionamentos nem dá para imaginar que a cidade sucumbiu ao avanço dos carros. A cidade só retomou o rumo da mobilidade após a crise do petróleo nos anos 70 (vale a pena conferir o vídeo sobre a história das cidades holandesas).

 

Em Amsterdã, prioridade para o transporte coletivo e a mobilidade ativa



Os principais centros urbanos na Europa têm rede integrada de transporte, com ônibus, metrô, VLT, calçadas e ciclovias. Existem cada vez menos estacionamentos na área central e as vagas costumam ser caras. Londres chega a impor pedágio urbano (taxa cobrada do motorista ao acessar determinadas áreas) para desestimular o uso do carro. Em Amsterdã pode-se ver claramente a distribuição justa do espaço: pedestres, ciclistas e usuários do transporte coletivo têm espaço garantido. 

 

Mas na capital automotiva por excelência – conhecida por seus moradores com cabeça, tronco e quatro rodas –, não temos sequer estacionamento rotativo (a chamada zona azul), o que dirá outras medidas restritivas ao carro. As obras da nossa “Linha Verde” (EPTG) se resumiram a ampliar o espaço dos carros, com mais pistas expressas e viadutos. E até hoje os prometidos ônibus modernos não circulam na via (vídeo mostra o histórico de imobilidade na “Linha Verde” de Brasília).

 

 

Antes e Depois: EPTG, a "Linha Verde” em fev/2018 e em mar/2019: resultado ao incentivar o transporte individual motorizado.

 

Os exemplos das cidades modernas e as várias leis federais e distritais (por exemplo, a Política Nacional de Mobilidade Urbana, o Plano Diretor de Transporte e o Sistema Cicloviário do DF) indicam a solução: priorizar o transporte coletivo e incentivar os modos ativos de transporte. Mas as autoridades ainda insistem na velha e atrasada lógica rodoviarista de incentivo ao transporte individual motorizado.

 

Talvez a realidade mude quando os governantes e diretores dos órgãos responsáveis pela mobilidade começarem a caminhar e usar o transporte coletivo. O transporte de massa pensado para todos e não apenas para as massas, para os excluídos que ainda não puderam adquirir o carro próprio.

A população também tem papel relevante na busca por cidades modernas e humanizadas. Quando a cobrança deixar de ser por mais viadutos e passar a ser por transporte público de qualidade, pontual e confortável – com linhas de VLT e corredores exclusivos de ônibus –, as autoridades ficarão mais atentas às reais necessidades.

Com uma frota motorizada crescente no DF (quase 2 milhões de automóveis registrados e 45% dos deslocamentos feitos por carros e motos) e mais viadutos previstos (na EPIG, em Taguatinga e em outras regiões), os congestionamentos só tendem a aumentar, após um breve período de alívio aos motoristas.


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