“Uma cidade com desenvolvimento urbano compacto, denso, com uso misto do solo. Caminhável, ciclável, com transporte público de qualidade. Onde temos acesso a trabalho, moradia e lazer sem ter que fazer deslocamentos de longa distância”. O sonho de Clarisse Linke, diretora executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), pode virar realidade em Salvador nos próximos 30 anos. Ao menos, se depender do Plano de Mobilidade que está sendo desenhado para a capital pela prefeitura, a próxima geração de soteropolitanos terá um lugar bem mais aprazível para viver.
O plano está sendo criado por uma equipe da Secretaria de Mobilidade de Salvador (Semob). A fase de diagnósticos já está concluída e, depois de um ano de estudos, revelou um raio-x nunca antes feito sobre o trânsito da cidade e os hábitos de deslocamento dos seus moradores.
Um dado surpreendente da pesquisa e que dialoga diretamente com a cidade ideal imaginada por Clarisse Linke é que 35% dos deslocamentos em Salvador são feitos a pé.
Ao todo, por dia na cidade são feitas 4.457 milhões de viagens em todos os modos existentes hoje na capital, sendo 40% através dos ônibus do sistema de transporte público coletivo, 22% com transporte individual (carros próprios) e 38% representa a soma dos transportes não motorizados, como as caminhadas (os já citados 35%) e as bicicletas e outros meios.
“O crescimento dos centros urbanos vem acompanhado de uma deterioração do espaço público. É fundamental entendermos onde está a origem dos problemas. E um deles está na motorização, o veículo particular se tornando a principal escolha de transporte para a população. Precisamos mudar este foco, diminuir o espaço dedicado ao carro, rever a distribuição com outros modais, o transporte público coletivo, a bicicleta, a mobilidade a pé", opina a especialista, e conclui: "As cidades precisam ser repensadas a partir de uma escala mais humana”.
Os deslocamentos a pé integram o que os especialistas chamam de transporte ativo, assim como as ciclovias para quem se desloca usando bicicletas. O dado revelado no diagnóstico da Semob, de que parcela importante dos soteropolitanos resolve a vida caminhando, mostrou que o plano de mobilidade precisará contemplar melhoria na infraestrutura para dar segurança e conforto aos pedestres da capital.
Segundo o titular da Semob, Fábio Mota, “é preciso melhorar bastante as calçadas da cidade, lembrando que calçada hoje é de responsabilidade por lei do dono do imóvel. Mas, segundo nosso diagnóstico, apenas 25% das calçadas de Salvador estão aptas para as pessoas caminharem". "A gente precisa melhorar. Em quatro anos já avançamos muito, conseguimos mais de 200 km de calçadas com o programa Eu Curto Meu Passeio, mas temos de dar reforço a isso”, conclui.
A acessibilidade na cidade como um todo também precisa de uma revisão, continua Mota: “Principalmente em relação às estações e aos pontos de ônibus. Também é preciso melhorar a articulação das redes de transporte, ou seja, fazer uma integração melhor com todos os modais da cidade; além de garantir a oportunidade de transporte para todos”, continua o secretário.
Plano de Mobilidade
Fábio Mota explica que o Plano de Mobilidade vai projetar o desenvolvimento viário de Salvador até 2049 levando em conta os dados apurados no diagnóstico. “A previsão é que o documento esteja concluído até dezembro, quando o prefeito ACM Neto deverá encaminhá-lo à Câmara dos Vereadores para votação. A expectativa é que a Câmara aprove o plano em março do ano que vem”, revelou.
Passada a etapa do diagnóstico, para concluir o plano, a Semob iniciará, nos próximos três meses, debates de soluções e perspectivas para a melhoria da mobilidade de Salvador, com a realização de workshops, escutas sociais com entidades da sociedade civil, audiências públicas e conversas com técnicos do Brasil e exterior.
Segundo Fábio Mota, a necessidade de repensar o crescimento de Salvador pela ótica da mobilidade se deve em grande parte às projeções de crescimento da capital. “Salvador vem ganhando 500 mil habitantes, como se fosse uma Feira de Santana, a cada dez anos. De 1960 a 2016, nós aumentamos em dois milhões a nossa população. Então, o maior desafio é planejar a necessidade de infraestrutura vinculada a mobilidade da cidade e a esse adensamento da população. É um desafio resolver essa questão porque sem mobilidade a cidade paralisa e isso impacta direto na vida das pessoas”, pontua o secretário.
Com 3,2 milhões de habitantes em 2049, cidade vai precisar de plano de mobilidade de longo prazo. Foto: Mauro Akim Nassor
Cidades humanizadas
O adensamento é o futuro da maioria das capitais. Mas, para Clarisse Linke, é possível ter cidades densas com boa qualidade urbana. E quem concorda com ela é o engenheiro civil e diretor do WRI Brasil Cidades Sustentáveis, Luís Antonio Lindau, que também participará do Fórum Agenda Bahia. Ele defende as chamadas cidades 3C: compactas, conectadas e coordenadas.
“A cidade compacta tem como diretriz maiores densidades populacionais em áreas próximas de infraestruturas urbanas (como corredores de transporte), enquanto a cidade conectada busca a integração dos diferentes modos de transporte, priorizando o transporte ativo (caminhada e bicicleta) e o transporte coletivo. Já a cidade coordenada tem como princípio a gestão eficiente do território, com especial atenção à gestão da valorização imobiliária na cidade”, define Lindau, que durante o Fórum Agenda Bahia vai ministrar uma oficina para gestores públicos sobre DOTS – Desenvolvimento Orientado para o Transporte Sustentável, mostrando também como é possível financiar projetos de urbanismo alinhados com o DOTS.
Desafios
Em Salvador, além do aumento da população, outro desafio na hora de pensar um novo plano de desenvolvimento norteado pela mobilidade é a geografia da capital. Fábio Mota diz, por exemplo, que Salvador tem um dos índices de declive mais elevados do país e que é essencial pensar soluções levando em conta essa geografia peculiar. “O índice aprovado pelos organismos da área é de 0,80 de declive e 70% da cidade está fora desse índice de urbanização”, revela.
O titular da Semob também cita a ocupação desordenada como outro dado instigante na hora de desenhar o futuro Plano de Mobilidade. “Esse diagnóstico trouxe para a gente dados desafiadores. Temos de pensar ações que vão melhorar a mobilidade em todos os sentidos. A cidade foi ocupada sem estudos, o que fez com que a gente chegasse a ter hoje, no horário de pico da manhã, por exemplo, engarrafamentos de 72km”, cita o secretário.
As premissas iniciais do futuro plano para Salvador se assemelham com o que prega o conceito do DOTS. Clarisse Linke explica que, além de promover o desenvolvimento mais humanizado das cidades, o DOTS também estimula a mobilidade sustentável e busca uma maior equidade social no acesso às oportunidades urbanas.
De acordo com ela, além da infraestrutura voltada ao transporte sustentável (ativo ou coletivo) de qualidade, para criar cidades mais agradáveis de se viver, é importante estimular o desenvolvimento urbano compacto, orientado pela oferta de transporte coletivo, com a distribuição mais equilibrada das oportunidades urbanas no território e a mistura de atividades complementares, habitação, comércio e serviços, por exemplo, no interior dos bairros.
“Estas medidas podem reduzir a necessidade de grandes deslocamentos pendulares diários pela população, facilitar o acesso às oportunidades urbanas (emprego e educação) e aumentar a adesão ao transporte sustentável, o que gera impactos positivos do ponto de vista ambiental, econômico e social para as cidades e regiões metropolitanas”, defende.
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